Philip K. Dick é um dos maiores autores de ficção-científica de todos os tempos. Foi com base em obras dele que surgiram filmes cultuados e de grande sucesso, como BLADE RUNNER, TOTAL RECALL, MINORITY REPORT, O HOMEM DUPLO, OS AGENTES DO DESTINO, entre muitos outros. Entretanto, todo esse reconhecimento só veio após seu falecimento, em 1982. Em vida, Dick sofria de alguma doença mental que lhe causava alucinações. Sempre viveu modestamente, com suas obras publicadas apenas por pequenas editoras e com edições econômicas. Nem seu livro mais famoso, O HOMEM DO CASTELO ALTO, que ganhou o prêmio Hugo, conseguiu torná-lo reconhecido. Suas obras são um reflexo de sua condição, onde a maioria trata de realidades alternativas, hoje chamadas de distopias. E em quase todas, há uma discussão filosófica sobre o que somos e o que vemos, o que é real e o que é imaginário.

O TEMPO DESCONJUNTADO, embora não seja reconhecido, influenciou, claramente, dois importantes filmes: MATRIX e O SHOW DE TRUMAN. É inegável a quantidade de semelhanças que existem entre as obras. Principalmente com o filme de Jim Carrey, que praticamente reproduz partes do livro, inclusive a fala final, entre o diretor do programa e Truman, antes dele sair do cenário que era a cidade onde ele morava.

Quando se faz a resenha de um clássico, escrito décadas atrás, em 1959, neste caso, não se pode comparar com o que foi feito após. Se você ler O TEMPO DESCONJUNTADO, irá ter a sensação de que já leu, ou viu, essa história em algum outro lugar. E realmente leu, ou viu. Como disse lá em cima, muitas obras escritas e filmadas se basearam nas idéias de Dick. Então você terá que se colocar no lugar do leitor da época e no quanto ele pode ter ficado surpreso por ler essas coisas pela primeira vez. Feito isso, você conseguirá apreciar melhor a leitura e se espantar com o brilhantismo do autor.

Na trama, Ragle Gumm é um quarentão que mora na casa da irmã e do cunhado e vive às custas dos pagamentos de um concurso do jornal local que sempre ganha. Seu nome aparece em destaque na página onde ficam os desafios, ele recebe visitas esporádicas de um dos funcionários do jornal que traz o cheque, é reconhecido por muitos nas ruas da cidade e, assim, vai levando sem grandes preocupações. Até que alguns detalhes, pequenos, começam a parecer fora do lugar, parecem estranhos, parecem bizarros. Como, por exemplo, alguns objetos desaparecerem; ele encontrar uma lista telefônica, cujos todos os números não funcionam; ele ler uma revista, que foi jogada fora, onde aparece uma atriz aparentemente famosa, Marilyn Monroe, que ninguém conhece; ou mesmo marcas de automóveis que ninguém jamais viu e mensagens ouvidas por um rádio amador que citam seu nome e coordenadas de pouso.

A partir desse ponto, ele começa a desconfiar que a realidade em que vive pode não ser exatamente aquela que ele pensa. Juntam-se a ele, Vic, seu cunhado, e Margo, a sua irmã. Eles começam a investigar tudo o que acham de estranho, o que desperta a interferência do vizinho, um homem que sabe bem mais do que aparenta e que tem contatos tão estranhos e misteriosos quanto os acontecimentos na vida de Ragle.

Na metade do livro, é palpável a frustração que o leitor compartilha com Ragle pela incapacidade de fazer algo simples: sair da cidade onde vive. O mesmo acontece com Truman, em O SHOW DE TRUMAN. Em certo ponto, ele simplesmente parece desistir de suas tentativas de escapar de uma realidade que não parece mais real, de um local que passou a apresentar tantas inconsistências, que fica evidente que existe algo além do horizonte, e que ele, Truman ou Ragle, não podem ver, não porque não querem, mas porque alguém não deixa.

Devido à época em que escreveu esta obra, Dick insere toda a paranóia que existia no pós-Segunda Guerra e no início do que seria o auge da Guerra Fria. Apenas dois anos depois, os soviéticos instalaram mísseis nucleares em Cuba, o que deixou o mundo muito próximo de uma terceira guerra. E em mais alguns anos, explodiu a Guerra do Vietnã. De qualquer forma, a ideia final de O TEMPO DESCONJUNTADO dispara na direção dessa paranóia e a usa como explicação para a importância de Ragle e do concurso que move sua vida. Ao contrário de Truman, Ragle não é um mero divertimento e uma forma de lucro. Ragle é importante para duas facções contrárias, e tem nos resultados de cada um dos testes do concurso, a vida de milhares nas mãos.

Inclusive, o autor consegue tratar de uma dúvida moral, que remete às bombas de Hiroshima e Nagasaki: o que torna um lado mais certo do que o outro, quando o resultado dessa disputa é a vida de milhares e milhares de pessoas? Um lado que seria o justo, pode ser considerado dessa forma se suas ações causam a morte de civis? Até que ponto as mortes em uma guerra são justificáveis para a causa de um dos lados?

E quando tudo fica explicado sobre o que está acontecendo, há duas decisões que são tomadas por Ragle e Vic: aceitar a realidade como ela é, ou preferir continuar a viver na ignorância, mas feliz? A mesma dúvida que é colocada em MATRIX e em O SHOW DE TRUMAN, e que você mesmo, leitor, pode se fazer. Se nós não somos reais, se nossa vida não é real, você preferiria descobrir o que é, ou deixaria como está?

O TEMPO DESCONJUNTADO é uma obra que incomoda pelos temas que levanta, que faz você refletir sobre quem é de verdade e sobre se gostaria de enxergar além daquilo que acha que vê. E isso é o que uma ficção-científica brilhante consegue fazer: questionar e espantar.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Philip KINDRED DICK, também conhecido pelas iniciais PKD, foi um escritor americano de ficção científica que alterou profundamente este gênero literário. Apesar de ter tido pouco reconhecimento em vida, a adaptação de várias das suas novelas ao cinema acabou por tornar a sua obra conhecida de um vasto público, sendo aclamado tanto pelo público como pela crítica e tornando-se um ícone da contracultura.
TRADUÇÃO: Braulio TAVARES
EDITORA: Suma
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 272


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