Caso você tenha faltado a alguma aula de Geografia ou História, a Jamaica é um país composto por uma grande ilha principal e várias outras ao redor, situado no mar do Caribe, descoberto e colonizado pelos Espanhóis, em 1494, que foram expulsos pelos ingleses, em 1655, e tornou-se independente apenas em 1962. A economia do país e quase totalmente centralizada em serviços e turismo. A maioria da população de Kingston, a capital do país, é de descendência africana, e a religião predominante é a Católica. Dois quintos da população vivem em assentamentos ilegais, e o país é considerado, por grupos de direitos humanos, como o mais homofóbico do mundo, por causa dos crimes violentos contra pessoas LGBT. Para se ter uma ideia, em 2014, após o dia do orgulho gay, milhares de pessoas foram às ruas para defender a lei da sodomia, que proíbe relações físicas entre pessoas do mesmo sexo, com possibilidade de reclusão por um período de até dez anos.

Toda essa introdução foi necessária para você ter uma leve noção de onde se desenrola a história de BEM-VINDOS AO PARAÍSO, que se concentra, principalmente, mas não só, em três personagens: Margot, uma mulher negra deslumbrante que trabalha na recepção de um hotel; Thandi, a irmã mais nova de Margot, de quinze anos, que frequenta uma escolha majoritariamente de brancos; e Delores, a mãe das duas, uma mulher preconceituosa e autoritária. Não é uma narrativa leve que você encontrará nas 410 páginas do livro. Na verdade, ao fim da leitura, você provavelmente sentirá que levou um soco no estômago, provavelmente sentirá um gosto amargo na boca, e provavelmente fechará os olhos e ficará muito tempo pensando no que acabou de ler. É isso que um livro excelente faz com o leitor.

Margot faz hora extra. Mas não na recepção, e sim como prostituta. Ela faz sexo com os hóspedes mais ricos, como forma de conseguir pagar o colégio da irmã e juntar dinheiro suficiente para comprar uma casa na parte nobre da cidade, longe da miséria da favela. Margot também mantém relações com seu chefe, Alphonso, porque nesses momentos, ela passa para ele ideias de como melhorar o hotel e de como ele poderá promovê-la para administradora. Só que esse não é o maior segredo de Margot. Existe outro. Ela é apaixonada por Verdene, uma mulher branca e rica, com quem mantém uma relação secreta. O que é proibido na Jamaica. O que é odiado pela maioria da população.

Existem muitos outros personagens (…), pessoas que demonstram bondade, preconceito, racismo, ignorância, intolerância, pessoas que não se importam com ninguém, nem sequer com elas mesmas.

Thandi, escondida da irmã e da mãe, paga para uma mulher aplicar um creme em sua pele para que fique mais clara. Ela é tão bonita quanto a irmã, só que mais jovem, mas não consegue enxergar essa beleza porque acredita que a cor de sua pele a torna feia. Ela acha que a indiferença e os cochichos que ouve no colégio são devido a ela não ser branca, que ela não tem futuro, que nunca encontrará quem goste dela. Thandi não sabe nada do que Margot faz, apenas que ela trabalha em um hotel. E não sabe o que ela passou nas mãos da mãe antes dela nascer.

Delores é a personagem que mais me deixou revoltado. Ela não consegue reconhecer nada do que Margot faz, e acha que Thandi é tão sem futuro quanto a irmã mais velha. Delores é o tipo de pessoa que só consegue ver coisas ruins, que reclama de tudo na vida, que maldiz qualquer pessoa, que julga e condena baseada apenas em seu preconceito. Ela é a responsável pelos traumas das filhas, pela falta de amor que elas sentem. Delores é responsável por muitas outras coisas terríveis, nojentas, que o leitor irá descobrir até o final da história.

E temos a quarta personagem, que embora não esteja presente na mesma quantidade, tem uma importância fundamental em quase tudo o que acontece. Verdene é vista como um demônio por quase todos, devido ao fato de saberem que ela sente atração por mulheres. Não importa que seja branca, não importa que seja rica, não importa que seja uma boa pessoa, o preconceito fica acima disso tudo. Ela ama Margot, e sabe que Margot a ama, mas existem coisas demais no meio dessa relação. Elas possuem um plano para conseguirem viver juntas, longe daquele inferno, mas também existe muita mágoa em Margot por tudo o que ela passou, e muita ambição por tudo o que ela deseja. Sentimentos assim, direcionam a pessoa para um caminho direto à destruição, ou à solidão.

É a Jamaica, mas poderia ser quase qualquer grande cidade do Brasil. Exclusão social, preconceito, racismo, todas essas injustiças da vida, não são exclusivas de lá.

Margot coloca Thandi na frente de tudo, ela coloca a irmã como uma âncora que não deixa que ela seja levada pela correnteza para a perdição. Mas Margot é ambiciosa, é inteligente, e faz qualquer coisa para conseguir o que deseja. Qualquer coisa. Ela pode passar em cima de qualquer pessoa, desde que isso signifique que conseguirá o que precisa para o bem da irmã e o seu bem.

Existem muitos outros personagens em BEM-VINDOS AO PARAÍSO, pessoas que demonstram bondade, preconceito, racismo, ignorância, intolerância, pessoas que não se importam com ninguém, nem sequer com elas mesmas. Algumas passagens são tão inacreditavelmente bárbaras, que custa acreditar que um lugar assim realmente exista. Por isso, eu fiz questão de colocar aquele primeiro parágrafo na resenha, para você compreender que, sim, ainda existem lugares demasiadamente cruéis no mundo, onde comportamentos desumanos se misturam na total miséria.

Margot, Thandi, Delores, Verdene, são mulheres totalmente diferentes, com sentimentos e motivações completamente diferentes, e que por isso mesmo, aos poucos, com o passar do tempo, criam um desiquilíbrio na relação, na vida, que as conduz para dois lugares possíveis: a paz longe do inferno, ou a descida a um inferno pior do que aqueles em que já vivem. Sim, porque é bem clara a descrição de onde vivem. De um lado, os hoteis luxuosos, de pessoas que chegam de todas as partes do mundo para se divertirem e deixarem dinheiro; do outro lado, favelas lotadas de miséria, sofrimento, fome. É a Jamaica, mas poderia ser quase qualquer grande cidade do Brasil. Exclusão social, preconceito, racismo, todas essas injustiças da vida, não são exclusivas de lá.

Uma obra impactante, dolorosa, com um final realista, com a mensagem de que, às vezes, os objetivos deixam a pessoa cega e sem aquilo pelo qual ela achou que lutava.

Os capítulos finais de BEM-VINDOS AO PARAÍSO são de uma profunda dor, da compreensão de que não adianta a gente querer o bem de alguém, se esse alguém não enxergar isso, ou não quiser isso. E que as coisas que fazemos, independentemente do quanto as façamos com boas intenções, podem não servir para nada, nem para nós mesmos. A conversa final entre Margot e Thandi, diante de Alphonso, é algo que dá um tapa no rosto do leitor, que demonstra, claramente, o que uma pessoa faz quando perde qualquer esperança.

BEM-VINDOS AO PARAÍSO é um drama intenso, com personagens no limite do abismo, consumidos pelo preconceito e pelo racismo de onde vivem, com atos de ambição que destroem as pessoas, inclusive as que amam. Uma obra impactante, dolorosa, com um final realista, com a mensagem de que, às vezes, os objetivos deixam a pessoa cega e sem aquilo pelo qual ela achou que lutava. E quando a pessoa consegue enxergar, já é tarde demais. Ou não se importa mais. Entra, sem dúvidas, na lista dos melhores livros da vida.

Ah, por fim, preciso elogiar o trabalho de Heci Candiane na tradução da obra. Muitos dos diálogos tentam ser fiéis à forma como uma parte da população fala na Jamaica, uma fala de pessoas ignorantes, algumas analfabetas. No início da leitura, é um pouco difícil entender o que eles dizem, mas, aos poucos, dá para acostumar. Algumas pessoas podem reclamar, dizer que não era necessário, já eu acho que ficou perfeito, ainda mais para destacar as crenças e comportamentos daquela região do mundo.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Nicole DENNIS-BENN nasceu e cresceu em Kingston, a capital da Jamaica. Aos 17 anos foi morar com seu pai nos Estados Unidos, para estudar medicina. Depois de um mestrado em Saúde Pública, e de atuar por alguns anos como pesquisadora na Universidade de Columbia, decidiu fazer aquilo que sempre amou: escrever. Cursou então um novo mestrado em escrita criativa. Já deu aulas em Princeton e nas Universidades da Pennsylvania e de Nova York.Seu aclamado livro de estreia, Bem-vindos ao Paraíso, aborda questões de sexualidade, gênero, turismo sexual e racismo. Nicole Dennis-Benn vive hoje com sua esposa no Brooklyn, Nova York.
TRADUÇÃO: Heci CANDIANE
EDITORA: Morro Branco
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 416


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