Se me perguntarem por um clássico que sempre se manteve atual, principalmente este ano, 2018, não me vem à mente outro que não A REVOLUÇÃO DOS BICHOS. Escrito em 1945, poucos meses após o fim oficial da Segunda Guerra Mundial, ele é uma crítica direta à política de Stalin, na então União Soviética, por realizar uma interpretação própria do marxismo para estabelecer uma verdade totalitária e fascista.

Orwell era socialista democrático, membro do Partido Trabalhista Independente, e considerava Stalin um traidor dos princípios originais criados durante a Revolução Russa de 1917, quando as pessoas trabalhavam muito e ganhavam pouco, sob um regime opressivo e pouco democrático. Foi nessa revolução que surgiu a União Soviética, o primeiro país socialista do mundo, e que perdurou até 1991.

Acontece que em 1929, Stalin conseguiu controlar o Estado com a montagem de um implacável sistema de repressão política, prendendo e torturando, com a justificativa de serem traidores, todos os que se opunham ao seu governo. Mais de vinte e três milhões de pessoas morreram no espaço de vinte e quatro anos, período em que o ditador ficou no poder.

A REVOLUÇÃO DOS BICHOS trata justamente dessa revolução e da tomada de poder de Stalin, com todas as terríveis consequências posteriores, mas como uma fábula, trocando a Rússia, por uma fazenda; Stalin, por um porco chamado Napoleão; e Trótski, um intelectual revolucionário que lutou contra Stalin, como Bola-de-Neve, um outro porco que se opunha a Napoleão.

Mas você pode abstrair toda a mensagem política da obra, porque, no fundo, ela trata de algo mais importante do que ideologias: ela demonstra como é fácil ser corrompido pelo poder; como, essencialmente, somos seres corruptos, que não exitam em obter benefícios em cima de outros, caso não haja represálias; como, se devidamente motivados, podemos aceitar perpetuar crueldades para forçar o outro a fazer o que desejamos; como, através de chavões, de frases de efeito, é fácil transmitir uma ideia que parece certa, mas que, na verdade, só induz a aceitar uma situação que é nociva.

A história criada por Orwell acompanha a revolução dos animais de uma fazenda. Quem inicia o movimento é um porco, o velho Major, que conta um sonho onde todos seriam livres e viveriam no meio da fartura. Logo após sua morte, cansados dos maus tratos e do excesso de trabalho, e incentivados pelas últimas palavras de Major, os animais expulsam o dono da fazenda e declaram que aquele pedaço de terra agora lhes pertence. Usando da igualdade, da democracia, criam, então, algumas leis imutáveis, uma espécie de constituição:

1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
2. Qualquer coisa que ande sobre quatro patas, ou tenha asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupas.
4. Nenhum animal dormirá em cama.
5. Nenhum animal beberá álcool.
6. Nenhum animal matará outro animal.
7. Todos os animais são iguais.

Não muito depois, os porcos, mais inteligentes, aprendem a ler, a escrever e decidem que irão organizar as tarefas dos outros animais. O que surte efeito durante uma tentativa de invasão da fazenda pelos homens, quando todos lutam bravamente, principalmente Bola-de-Neve, o único porco que realmente dedica seu tempo a aprimorar a fazenda e a melhorar a qualidade de vida de todos os animais. Suas ideias de igualdade entram em choque com as ideias autoritárias de Napoleão, que começa a levantar acusações graves contra Bola-de-Neve. Por conta disso, acontece a divisão dos animais: alguns apoiam Bola-de-Neve; outros, apoiam Napoleão. A partir daí, gradativamente, os porcos se colocam em uma posição acima dos outros animais, mudam-se para a casa do antigo dono, utilizam cães como força opressora, conseguem expulsar Bola-de-Neve e modificam algumas das leis que criaram durante a revolução:

4. Nenhum animal dormirá em cama com lençóis.
5. Nenhum animal beberá álcool em excesso.
6. Nenhum animal matará outro animal sem motivo.
7. Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que os outros.

A narrativa segue mostrando a corrupção dos porcos e a opressão que instalaram na fazenda, obrigando todos os animais a aceitarem suas determinações. O fim da obra, a última frase na verdade, é um tapa da cara do leitor. E deixo para vocês descobrirem, na leitura, ao que ficam reduzidas as sete leis que eles criaram.

Existem vários trechos em A REVOLUÇÃO DOS BICHOS que são terrivelmente claros de como se encaixam na nossa realidade atual. Principalmente no uso de chavões, de promessas vazias, na deturpação da história, no anúncio de mensagens falsas, na modificação de leis, na criação de um inimigo como forma de desviar a atenção do que se faz, para o que esse inimigo supostamente fez. Tudo isso para convencer a massa a aceitar a doutrinação de um novo líder.

Entretanto, o que mais assusta, é como essa força opressora vai assumindo o poder aos poucos, bem devagar, através de momentos específicos e ações planejadas com muita antecedência. Por exemplo, os porcos desviam o leite das vacas sem ninguém saber. Quando se descobre, eles já se provaram mais inteligentes e capazes de tomar decisões, e justificam o desvio como uma necessidade. Ou quando os filhotes da cachorra da fazenda desaparecem, para ressurgirem meses depois, já adultos, ferozes, violentos, controlados pelos porcos. Tinham sido os porcos quem sequestraram os filhotes, para criá-los em separado e treiná-los como um exército para controlar os animais que se opusessem às suas ordens.

É assim que uma tirania surge. Não é da noite para o dia, é através de meses, de anos, quando todos os principais setores da sociedade já estão devidamente corrompidos e controlados, de forma que não há mais como escapar. Foi assim no golpe de 1964 aqui no Brasil, foi assim com o Nazismo, foi assim com o fascismo na Itália, foi assim após a Revolução Russa, foi assim com todos os governos totalitários da história. Um outra ficção que retrata esse domínio gradativo com enorme veracidade, é a obra de Margaret Atwood, O CONTO DA AIA.

Quanto à edição, desta vez como uma HQ, é muito linda. Em tamanho maior, os desenhos são pinturas que imitam o estilo de quadros a tinta, que, se aumentados, realmente serviram para pendurar na parede. A narrativa segue à risca o livro original, excetuando as descrições, uma vez que as imagens as substituem. E preciso dizer que o fato de algumas partes saírem do imaginário, surpreendeu pela violência, que na leitura do livro não reparei. Por exemplo, o trecho da morte de alguns personagens, acusados de traição e conspiração, pelos cães doutrinados de Napoleão. É muito violento. Ou mesmo quando um outro personagem é enganado com a promessa de estar sendo levado para tratamento, quando, na verdade, está a caminho da execução. É de cortar o coração ver os desenhos, de uma forma muito mais intensa do que no livro. Essa é a magia das HQs, a possibilidade de se ver de forma mais realista o que não se conseguiu imaginar durante a leitura.

A REVOLUÇÃO DOS BICHOS não é apenas uma fábula que critica a política de Stalin, ela critica toda e qualquer forma de totalitarismo, de injustiça, de intolerância, de opressão. Ela demonstra como seres totalmente diferentes, trabalhando em conjunto, podem construir um mundo melhor para todos; e como uma minoria sedenta de poder, dissimulada, pode destruir tudo. E isso não é uma ideologia política, não é esquerda, não é direita, é apenas humanidade e compaixão.


AVALIAÇÃO:


AUTORES: George ORWELL é um pseudônimo de Eric Arthur Blair, nasceu em 1903, na Índia, onde seu pai trabalhava para o império britânico, e estudou em colégios tradicionais da Inglaterra. Jornalista, crítico e romancista, é um dos mais influentes escritores do século XX, famoso pela publicação dos romances A revolução dos bichos (1945) e 1984 (1949). Morreu de tuberculose em 1950. ODYR nasceu em Pelotas, em 1967. É autor de dois livros como desenhista – Copacabana, com roteiro de Lobo, e Guadalupe, com roteiro de Angélica Freitas. Participou das coletâneas Irmãos Grimm em Quadrinhos, Dias Negros (Argentina) e MSP 50. Publicou quadrinhos e ilustrações na Folha de S. Paulo, O Globo, Le Monde Diplomatique Brasil, Público (Portugal) e nas revistas Vida Simples, Trip, entre outras.
TRADUÇÃO: Heitor Aquino FERREIRA
EDITORA: Quadrinhos na Cia
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 176


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