Antes de falar sobre SEMENTE DE BRUXA, preciso passar algumas informações sobre a peça de teatro em que Margaret Atwood se baseou. Escrita entre 1610 e 1611, acredita-se que A TEMPESTADE foi a última peça teatral de William Shakespeare. Entretanto, ela não ganhou notoriedade, principalmente porque em 1642, os teatros foram fechados e só reabertos após a Restauração inglesa de 1660. O teor do texto diferia um pouco das demais obras do autor, e só mais recentemente, no século XX, ela foi reavaliada e, finalmente, considerada uma das mais importantes de Shakespeare.

A TEMPESTADE é, essencialmente, uma história de vingança, mas ela também contém conspirações, desejos de liberdade, reconhecimento da lealdade e, até mesmo, do encontro do amor. Em uma ilha remota, Próspero, Duque de Milão, um mago de amplos poderes, vive com sua filha Miranda. Ambos foram enviados para lá devido a uma traição política perpetuada por Antônio, irmão de Próspero, e o rei Alonso de Nápoles. Na ilha, Próspero descobre que os traidores viajam em um navio e utiliza os poderes de Ariel, um espírito que se metamorfoseia em água, ar e fogo, para provocar um naufrágio e levá-los para ilha. Então, inicia um plano para restaurar Miranda ao poder que lhe foi roubado.

SEMENTE DE BRUXA tem praticamente a mesma estrutura, só que adaptada para uma realidade possível. Nela, temos Felix, um famoso diretor de teatro que perdeu a esposa e a filha de três anos de idade. Após o luto, ele começa a apresentar uma crescente criatividade que beira o extravagante, e por isso começa a desagradar uma grande parcela do público e dos críticos. Ao apresentar suas ideias para uma nova versão da peça A TEMPESTADE, Tony, seu braço direito, convence Sal, o produtor da companhia, a demitir Felix. Obviamente, Tony assume o lugar vago.

Abatido, sentindo-se traído, Felix assume uma nova identidade, Duke, e se refugia em uma cabana, no meio do nada, por doze anos, período em que tenta encontrar uma forma de se reerguer. Ao ser convidado para substituir um professor em uma instituição carcerária, onde poderá ensinar os prisioneiros a serem atores de peças de teatro, como forma de interação e aprendizado, ele começa a se sentir revigorado. Com o sucesso de sua iniciativa, ele recebe a notícia de que Sal e Tony, agora responsáveis por projetos culturais do governo, irão visitar o presídio para conhecerem o processo, ele vê sua chance de vingança e resolve encenar A TEMPESTADE como meio para isso.

Atwood cria personagens análogos à obra de Shakespeare, que, por sua vez, montam e participam de uma peça de teatro que tem os personagens correspondentes. A maneiro como ela faz isso, é simples e brilhante ao mesmo tempo. Na peça, Próspero era obcecado pela felicidade e Miranda, sua filha. Da mesma forma que Felix. Durante os doze anos de seu exílio na cabana, ele passa os dias tendo visões da filha morta, como se ela estivesse vida, e conversa com ele, sempre com a promessa de que encontrará uma forma de a fazer feliz. Esses momentos de falta de lucidez são tristes e criam um laço afetivo no leitor que o ajudará a compreender e a aceitar a vingança que Felix perpetua.

Os demais personagens de Shakespeare que vivem na ilha e são usados por Próspero na criação da vingança, possuem correspondentes dentro da prisão e também são usados por Felix. Aos poucos, o leitor consegue identificar quem é quem, mas não consegue adivinhar como eles serão usados. Na verdade, até os capítulos finais, não é dada nenhuma pista do que Felix irá fazer, ou do papel de cada um nesse esquema. Entretanto, quando ele começa, é surpreendente de tão simples e de tão eficaz.

Atwood, acredito que de forma respeitosa, manteve o clima ingênuo dessa vingança. Não espere mortes, sofrimento, lutas, ou qualquer coisa do gênero. Como na peça original, o final, apesar de surpreendente, é carregado de otimismo. O único ponto que aperta o coração, é que, ao contrário da peça, Miranda, a filha de Felix, continua morta.

A narrativa pode ser dividida em quatro arcos, que compreendem a queda de Felix, sua volta através do trabalho no presídio, o ensaio de A TEMPESTADE como forma de vingança, e a execução da vingança. Neles, existem dois pontos que dissecam a peça de Shakespeare: o primeiro, é parte do ensaio, onde Felix define quem se encaixa melhor em cada personagem; o segundo ponto, é após a vingança, quando Felix reúne todos os atores para fazerem um apanhado do papel que cada um teve e quem se aproximou mais da mensagem que Shakespeare desejou passar com sua peça. Ambos são uma aula competente e profunda sobre a obra do autor inglês e sobre o comportamento humano. Recomendo que leia com atenção, vale muito a pena.

SEMENTE DE BRUXA é uma história sobre vingança contra o oportunismo e a indiferença, e sobre superação da perda de quem amamos. Como brinde, aprendemos como Shakespeare era genial, e como Atwood soube aproveitar essa genialidade para a sua própria. Um livro profundo que, com certeza, irá enriquecer você como pessoa.

Ah, e de brinde, a editora incluiu um resumo de A TEMPESTADE no fim do livro. Eu aconselho que você leia antes da história principal. Irá ajudar muito a indentificar os paralelos que a autora faz com a peça de teatro.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Margaret ATWOOD é uma escritora canadense: romancista, poetisa, ensaísta e contista, foi galardoada com inúmeros prêmios literários internacionais importantes (Arthur C. Clarke Award, Prince of Asturias, Booker Prize). Recebeu a Ordem do Canadá, a mais alta distinção em seu país além de ter sido indicada várias vezes para o Booker Prize – tendo o ganhado no ano 2000 com o romance O Assassino Cego (The Blind Assassin, 2000). Outros romances de sua autoria são Olho de Gato (Cat’s Eye, 1988) e Oryx & Crake (2003). Sua obra é conhecida por mesclar uma fina veia irônica e lúdica com uma aguçada perspicácia para questões contemporâneas – como as relações de gênero e o meio ambiente
TRADUÇÃO: Heci Regina CANDIANI
EDITORA: Morro Branco
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 352


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