Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, em 11 de outubro de 1825, e morreu na cidade de Guimarães, Maranhão, em 11 de novembro de 1917. Filha ilegítima de pai negro, ela própria negra, a autora carregava todos os marcadores da desclassificação social. Foi professora de letras e fundou uma sala mista, que escandalizou os círculos locais. Escreveu ÚRSULA em 1859, e é uma das primeiras romancistas brasileiras. No seu lançamento, em 1860, a obra recebeu resenhas modestas nos jornais de São Luís. Mas isso era esperado, uma vez Maria Firmina já havia conseguido o quase impossível: ser admitida no restrito círculo de letrados locais. A sociedade brasileira do século XIX, patriarcal e escravista, era profundamente elitista. Mulheres escritoras constituíam raras exceções. A decisão da autora de publicar sua obra, de vê-la caminhando entre críticos e leitores, é um ato de desafio e autoconfiança.

ÚRSULA foi o primeiro romance a dar voz a negros, uma vez que possui capítulos cujos protagonistas são Túlio e Mãe Susana, dois escravos que compartilham com o leitor uma reflexão a respeito de si próprios, de suas vidas, das injustiças da escravidão e de suas opções frente à opressão da sociedade escravista de frente ao mando senhorial. As recordações de Susana como mulher livre em algum lugar da África, como esposa e como mãe, demonstram a criatividade e capacidade de Maria Firmina em arquitetar uma trama densa e alheia a qualquer código literário.

Entretanto, foi apenas na década de 1970 que ÚRSULA começou sua trajetória de obra indispensável dos clássicos nacionais. Horácio de Almeida, bibliógrafo e colecionador, descobriu, no meio de um lote de livros antigos adquiridos no Rio de Janeiro, um pequeno volume em cuja folha de rosto se lia: “Ursula/Romance Original Brasileiro/Por Uma Maranhense/San’Luis/Na Typographia do Progresso/Rua Sant’Anna, 49 – 1859. Horário iniciou um trabalho de pesquisa, que o levou a descobrir o passado de Maria Firmina e seu romance publicado em data muito precoce em comparação a romances escritos por mulheres no Brasil.

Esse é um resumo da extensa introdução de ÚRSULA, escrita por Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo, com cronologia de Flávio dos Santos Gomes, licenciado em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Introdução esta que não deve ser lida por você até finalizar a leitura da história, uma vez que contém todos os spoilers possíveis e irá estragar, com certeza, o prazer de sua leitura.

Tancredo é um jovem de uma família rica e poderosa da capital. Seu pai é autoritário e arrogante, atormenta a esposa a ponto de fazê-la cair na cama doente. Ao retornar para casa, após completar seus estudos em Direito, Tancredo conhece Adelaide, uma órfã que a mãe dele recolheu como protegida. Ele se apaixona por ela, mas o pai não aprova o relacionamento devido à falta de posses da moça. Após uma séria discussão, o pai aceita o noivado, desde que Tancredo parta em uma viagem de um ano para resolver uma missão quanto aos negócios da família. Quando retornar, poderá se casar com Adelaide. Ele aceita e vai embora resoluto. Poucos dias antes do prazo de um ano finalizar, ele recebe a notícia de que sua mãe faleceu. Ao chegar em casa, Tancredo encontra Adelaide coberta de joias e casada com seu pai. Destruído emocionalmente, traído, sem forças, ele vai embora e desmaia no meio do caminho, em um local afastado, no meio do mato. É socorrido por Túlio, o escravo pertencente a Luiza, a senhora dona de uma pequena fazenda próxima, e mãe de frágil e linda Úrsula.

Luiza é viúva, seu marido foi assassinado a mando do irmão dela. Ela e a filha vivem com medo que o homem retorne para completar a matança. Com a convivência com Úrsula, enquanto recupera a saúde, Tancredo supera Adelaide e se apaixona pela menina. Ele promete ajudar a mãe dela e a reerguer a fazenda. Os dois ficam noivos e combinam o casamento, mas então, o irmão de Luiza retornar com a intenção de terminar o que começou. Com a ajuda de Túlio e de mãe Susana, o casal inicia uma fuga para salvar a vida.

ÚRSULA é aquele clássico impregnado de romance extremo, dramático, com reviravoltas típicas da época. E se você já leu clássicos, sabe como quase todos terminam de forma pessimista, como deixam seu coração destruído. Entretanto, a obra de Maria Firmina consegue se destacar exatamente pelo tom abolicionista e da importância que entrega aos personagens secundários negros. Eles possuem voz ativa, possuem sentimentos e possuem importância fundamental no desenrolar dos acontecimentos. Mais emocionante é a consciência do lugar deles nessa sociedade, como eles ficam surpresos com pessoa gestos de igualdade feitos por pessoas brancas, como quando Tancredo pega na mão de Túlio e agradece por ter salvo sua vida. Coisas tão simples e tão importantes ao mesmo tempo para quem sofre preconceito e maus tratos.

Úrsula também foge um pouco do padrão da jovem da época. Embora jovem, ela é decidida, corajosa, reconhece a maldade do homem e enfrenta quem a ameaça, mesmo com risco de ser morta. Ela não se demonstra tão romântica quanto Tancredo, que excede na dependência de suas emoções. Embora seja compreensível o sofrimento pela traição que ele sofreu. Vamos concordar que não é fácil você descobrir que a mulher por quem era apaixonado, na verdade era uma pessoa fútil e interesseira, e que seu pai a desposou no seu lugar. Isso revira a cabeça de qualquer pessoa.

ÚRSULA, como a maioria dos clássicos, não é uma leitura convencional. Ela deve ser lida, estudada e interpretada de acordo com a época em que foi escrita e por quem ela foi escrita. A vida de Maria Firmina já valeria um romance próprio, tamanha sua coragem e obstinação em superar barreiras de uma sociedade extremamente machista e racista. Não apenas como escritora, mas também como professora. Apenas por isso, já vale, e muito, a leitura. Mas posso afirmar que você não irá se decepcionar com o romance de Úrsula e Tancredo, nem com a narrativa de Túlio e mãe Susana. Eles merecem estar na sua estante. Merecem ter suas histórias lidas. Acredite.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Maria Firmina dos REIS nasceu em São Luís do Maranhão, em 11 de março de 1822. Entretanto, seu batismo ocorreu apenas em 21 de dezembro de 1825, constando na certidão sua condição de “filha natural” de Leonor Felippa dos Reis e estando ausente do documento o nome de seu pai (ADLER, 2017). Afrodescendente nascida fora do casamento e vivendo num contexto de extrema segregação racial e social, aos cinco anos ficou órfã e teve que se mudar para a vila de São José de Guimarães, no município de Viamão, situado no continente e separado da capital pela baía de São Marcos. Formou-se professora e exerceu, por muitos anos, o magistério, chegando a receber o título de “Mestra Régia”. Em 1847, com vinte e cinco anos, Reis vence concurso público para a Cadeira de Instrução Primária na cidade de Guimarães-MA, conforme registra seu biógrafo Nascimento Morais Filho (1975). E, ainda segundo este autor, ao se aposentar, no início da década de 1880, funda, na localidade de Maçaricó, a primeira escola mista e gratuita do Maranhão e uma das primeiras do País. O feito causou grande repercussão na época e por isso foi a professora obrigada a suspender as atividades depois de dois anos e meio.
EDITORA: Penguim – Companhia das Letras
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 215


COMPRAR: Amazon