Depois que terminei de ler INTRUSOS, pesquisei um pouco sobre o autor, que não conhecia, e descobri uma pequena informação que me surpreendeu. Não sobre ele, mas sobre a mudança do título da HQ na publicação nacional. Originalmente, ela se chama KILLING AND DYING, que em uma tradução direta, seria algo como MATANDO E MORRENDO. Esse também é o título de uma das seis histórias curtas que compõem a HQ e faz muito, mas muito mais sentido sobre o que é mostrado na obra.

Embora os contos sejam levemente, disfarçadamente conectados, e cabe ao leitor descobrir as pistas de como, eles possuem algo mais óbvio em comum: falam de pessoas frustradas, de alguma forma infelizes com elas, ou com a forma como vivem, ou com aquilo que não conseguem realizar, ou com quem vivem, ou mesmo pelas limitações físicas e ou criativas a que ficam limitadas. Todas as histórias têm um início posterior e um final incompleto. Elas são momentos extraídos da vida desses personagens, situações que eles passaram, dramas que enfrentaram, ou ações que realizaram, e esses momentos servem para conversar com o leitor de forma bastante crua, sem floreios, às vezes até um pouco cruel, deixando claro que na vida não existe um atenuador para aquilo que sentimentos e que pode nos derrubar, ou levantar. E por isso eu acho que o título original da obra faz mais sentido do que o título nacional, porque todas as histórias mostram personagens matando ou morrendo, não fisicamente, mas emocionalmente.

BREVE HISTÓRIA DA ARTE CONHECIDA COMO HORTESCULTURA mostra o sonho de um jardineiro em criar algo único, uma escultura feita de plantas, argila e madeira. O homem acha que é um artista, que seu produto irá revolucionar o mercado, que será exposto em casas, empresas, lojas, que ficará rico e famoso. É o seu sonho, não importa o quão grande ele pode ser. Só que ele é casado e com o passar dos anos, tem uma filha, cria uma família que precisa de sustento. Além disso, suas obras começam a criar situações de embaraço para aqueles que ama, além dele próprio. Então, acompanhamos o nascer de um sonho e sua possível morte, porque chega em um momento da vida que precisamos ser práticos, precisamos pensar mais em quem amamos do que em nós, ou então ficamos sozinhos. É necessário matar algo para que outras coisas continuem vivas.

AMBER SWEET conta a vida de uma garota que é confundida com uma atriz pornô pela semelhança física. Seus colegas de faculdade começam a tratá-la de forma diferente, porque acham que ela é desse meio. E quando ela desmente, diz que não é ela, pensam que está mentindo. Aos poucos, isso torna a vida dela um inferno, até que ela decide mudar seu visual, se transformar em outra pessoa. Nessa história, são tratados assuntos sensíveis, como preconceito, machismo, injustiça, bullying, o quanto tudo isso afeta a personalidade de uma pessoa e a obriga a fugir para conseguir se manter sã. É preciso matar quem você era e criar alguém que as pessoas com quem convive consigam se relacionar.

VAMOS, OWLS é um dos contos mais fortes e desesperançosos da HQ. Em uma reunião dos Alcoólicos Anônimos, uma garota conhece um cara com o gosto em comum pelos esportes, eles começam um relacionamento e passam a morar juntos. Ela descobre, então, que ele é um traficante de drogas, o que não a incomoda, e nem quando ele também se mostra com um gênio explosivo e violento. Em toda a história, pouco ficamos sabendo sobre a garota, é ele quem utiliza quase todos os balões para falar dele, do que ele gosta e do que ele deseja fazer. Nos únicos momento em que a garota tenta contar algo sobre ela, ele a interrompe e diz que ela não cala a boca, que não deixa ele se expressar, ou apanha ou é ignorada. É um relacionamento abusivo, que deprecia totalmente a presença da garota, como se ela fosse uma boneca que serve apenas para deixar a vida do miserável menos solitária. Aos poucos, ele mata o pouco que ainda existe de vida nela.

TRADUÇÃO DO JAPONÊS é uma história bem curta, onde a carta de uma mãe é traduzida para o filho. Ela narra de como eles saíram do japão e foram viver nos EUA, devido ao relacionamento da mãe com um americano. É uma das histórias que tem uma relação mais clara com uma outra história anterior, e essa conexão torna causa um certo enjoo, porque transforma o pai da criança, que já era nojento, em alguém ainda pior. Ela, sozinha, funciona como um relato triste do fim de uma vida, mas em conjunto com a história com a qual se conexão, causa revolta pela que a mãe e escritora da carta deve ter vivido, e pelo que deve ter morrido.

A história seguinte seria TRIUNFO E TRAGÉDIA, que no original é KILLING AND DYING, o tal título da edição americana, mas vou falar da última primeiro, INTRUSOS, que dá título à edição brasileira. Nela, acompanhamos um homem que recebe a chave da casa onde passou a infância de uma amiga que não via há muito tempo. Ele, então, passa os dias em uma lanchonete em frente a essa casa, estudando a rotina do atual dono. Quando acha que já está familiarizado, quando o dono sai, ele entra e fica pelas horas restantes em meio a recordações de quando morou no lugar, até que um adolescente invade para roubar e eles têm um confronto. Novamente, vemos a frustração de uma pessoa que não se encaixa na vida que leva e prefere fingir algo que não existe, até que a realidade lhe dá um tapa na cara para que acorde e veja quem realmente é.

Voltando a TRIUNFO E TRAGÉDIA, ou MATANDO E MORRENDO, é a história mais pesada da edição. É a história de um casal e sua filha. A mãe está com câncer e a filha, que tem disfemia, gagueira, tem o sonho de ser uma comediante e ter seu próprio show de stand up. Acompanhamos a evolução da doença da mãe, a recusa inicial do pai em incentivar o sonho da filha, por achar que ela não tem o talento necessário, e a persistência da menina em fazer o que gosta. Mas, realmente, acompanhamos três vidas que chegam ao fim: a mãe, pela doença; o pai, por desistir de proteger a filha e deixar que ela sofra as consequências; e a filha, por descobrir que seu sonho pode ser impossível, uma vez que depende de um talento nato e não de um desejo. É uma história impactante, dolorosa, que não poupa o leitor, que mostra como somos tão dependentes de sonhos impossíveis a ponto de esquecermos que já podemos ter uma vida plena, feliz, e estragamos tudo, em um nível que não tem mais volta. É a síntese de todas os outros cinco contos, elevado a uma altura que vai deixar você pensativo por muito tempo.

INTRUSOS é uma HQ que trata das fraquezas humanas, da inabilidade de conseguirmos a felicidade porque somos egoístas demais com aquilo que desejamos, a ponto de esquecermos o que realmente é importante e quem realmente merece nossa atenção e amor. É uma HQ que fará você repensar seu estilo de vida, seu comportamento com seus familiares, seus amigos, que fará você chorar e abraçar seus pais, seus filhos, você mesmo.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Adrian TOMINE nasceu em 1974 em Sacramento, Califórnia. Começou no mundo dos quadrinhos publicando, por contra própria, sua série Optic Nerve. Seus quadrinhos foram transformados em antologias e sua graphic novell Shortcomings foi um dos livros notáveis do The New York Times em 2007. Desde 1999, Tomine é um dos autores que contribuem regularmente para o The New Yorker. Ele mora no Brooklyn com a esposa e a filha
TRADUÇÃO: Érico Assis
EDITORA: Nemo
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 128


COMPRAR: Amazon