Daunis Fontaine vive em dois mundos, mas se sente uma estranha em ambos. Aos dezoito anos, a jovem se vê eternamente dividida entre a família da mãe ― branca e conservadora ― e a do pai, indígenas da reserva Ojibwe de Sugar Island, no Michigan. Ela sonha com a nova vida que vai levar ao se mudar para cursar a faculdade, bem longe dos boatos sobre sua origem, mas uma tragédia a obriga a adiar seus planos.

Quando Jamie, um lindo e talentoso jogador de hóquei, chega à cidade, a jovem sente que a monotonia dos seus dias está prestes a acabar. Porém, ao testemunhar um assassinato perturbador na reserva, ela se dá conta de que há algo errado ― com Jamie, seus amigos e sua comunidade.

De uma hora para outra, Daunis se vê envolvida em uma investigação do FBI sobre uma nova droga que tem feito cada vez mais vítimas. Receosa, ela aceita trabalhar como informante, usando seus conhecimentos de química e da medicina tradicional Ojibwe. Mas a busca pela verdade se mostra mais perigosa e dolorosa do que ela imaginava, trazendo à tona segredos e abrindo feridas ainda não cicatrizadas.

A FILHA DO GUARDIÃO DO FOGO caminha por diversos estilos diferentes durante a narrativa. O leitor irá encontrar um romance adolescente; um drama familiar sobre origens e costumes; um mistério sobre assassinatos; um suspense sobre investigação de narcotraficantes; e, por fim, uma denúncia sobre como os povos indígenas são ignorados e postos à parte na sociedade americana atual. Apesar de ser seu primeiro livro, a autora consegue trafegar entre esses diferentes assuntos de maneira orgânica em quase todos os capítulos. Entretanto, algumas partes, infelizmente, ficam aquém do que poderia ser esperado, principalmente quando se trata sobre Daunis, a personagem principal.

Não é a primeira história que leio sobre tráfico de drogas entre comunidades isoladas ou fechadas. Existem diversos livros, filmes e séries que tratam do mesmo assunto. Nesse ponto, A FILHA DO GUARDIÃO DO FOGO não traz nada de novo, apenas reforça como o FBI e a política americana atua e cria leis que não necessariamente protegem essas pessoas. O assunto é tratado no livro de maneira bem direta, sem meias palavras, e a isso ainda é adicionada uma outra denúncia em relação a leis de proteção individual.

Uma personagem indígena, que não vou mencionar para não estragar a leitura, é estuprada quase no final do livro. Como o fato acontece em território indígena e foi perpetuado por um homem branco, a lei americana nada faz. É um assunto sério que é denunciado na história. Entretanto, a forma como a autora conduz o que a personagem pensa e faz após ser violentada, não condiz com a agressão, e isso me incomodou bastante.

A personagem não reage ao estupro, ela sai do local, vai dançar com o namorado, conversa com as pessoas naturalmente, e em nenhum momento cogita dizer o que fizeram com ela, não congita denunciar o estuprador, e nem sequer envolver a polícia. Eu até considerei que ela poderia estar em choque, mas isso não é evidenciado pela autora em parte alguma. Pelo contrário, ao final da história, ela resolve revelar o que aconteceu, e da forma como a autora faz, parece que é apenas para denunciar a tal falta de interesse do governo americano, esquecendo de estabelecer e aprofundar o que uma garota normalmente estaria sentindo pelo que aconteceu. E essa letargia é copiada pelos outros personagens, que ao descobrirem, não demonstram a reação esperada para algo dessa importância.

Penso que isso se deve bastante à falta de experiência da autora, afinal é seu primeiro livro. Mas dentre tudo o que acontece na história, essa é a parte que mais destoa do que se espera na construção de uma personagem e na condução de ações de violência e suas consequências. Existem mais partes que me pareceram estranhas, fora do lugar, mas não chegaram a incomodar e o prazer da leitura não foi afetado.

Daunis é construída para ser uma adolescente forte, e para se transformar em uma mulher ainda mais forte. Jamie tem um papel nessa jornada, mas não é fundamental, é apenas uma parte da vida que leva Daunis a se conhecer e a conhecer qual caminho realmente deseja seguir. Acredito que Daunis representa muitas garotas reais que precisam enfrentar dilemas semelhantes, e ela, com certeza, serve de inspiração e se transforma em uma esperança de que as coisas podem mudar, por mais difíceis que pareçam, ainda mais para povos que são postos à parte em sua própria terra.

Assim, apesar desses deslizes na construção da narrativa e de alguns personagens, A FILHA DO GUARDIÃO DO FOGO é um livro importante, inclusivo, que embora tenha como personagens principais indivíduos da cultura americana, a mensagem pode e deve ser estendida a outros povos e culturas que sofrem de injustiças semelhantes ou piores. Uma leitura gratificante, que fará você refletir e aprender um pouco sobre costumes que não são comuns no Brasil.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Angeline Boulley
TRADUÇÃO: Bruna Miranda
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2022
PÁGINAS: 432