Durante o século XIX, e ainda hoje, mas em menor escala, os jovens ricos, de famílias aristocratas, antes de entrarem nos negócios ou em alguma faculdade, realizavam o que se chamava Grand Tour, uma viagem pela Europa que poderia levar mais de um ano. Afinal, uma simples ida da Inglaterra à Itália, que hoje pode ser feita em duas horas de avião, poderia levar semanas, e tudo a cavalo ou carruagem. Realizadas com o objetivo de adquirir conhecimento, estudar obras de arte, assistir a óperas, entre outras atividades culturais, também eram permeadas de muitas festas, muita bebida e muito sexo. É no início de uma tour, que Monty, o personagem principal, filho de um conde, inicia sua narrativa.

Monty não irá viajar sozinho. Ele terá como companhia: Percy, seu melhor amigo; Felicity, sua irmã mais nova; e um tutor nomeado por seu pai, que, claro, não é bem-vindo. Além de aproveitar esse ano para se preparar para seu destino na frente dos negócios da família, Monty deseja, mais do que tudo, declarar seu amor para Percy, e descobrir se é recíproco. No meio da jornada, Monty rouba, como retaliação por uma discussão, um artefato de um lorde Francês, o que desencadeia uma perseguição mortal por metade da Europa.

Eu pensei que O GUIA DO CAVALHEIRO PARA O VÍCIO E A VIRTUDE, fosse um romance de desencontros, mas, na verdade, é uma aventura empolgante, engraçada, com personagens cativantes, imperfeitos, inseguros quanto ao futuro, que conquista logo nas primeiras páginas. E isso não se deve apenas ao trio principal, mas, também, a um elenco de personagens secundários bem apresentados, que aparecem nos momentos certos, que ganham importância por suas atitudes, e que dão uma qualidade incrível a todo o texto.

Felicity, irmã mais nova de Monty, sonha estudar medicina e possui pensamentos e atitudes feministas, mas, na época, é impossível para ela realizar esse sonho de forma legal, uma vez que é proibido para as mulheres frequentarem uma faculdade, que dirá serem médicas. É uma informação importante para os dias de hoje no Brasil, onde uma grande parcela da população pensa que o feminismo não foi importante para a conquista dos direitos das mulheres. É fácil desdenhar de algo, quando esse algo já permitiu que houvesse liberdade para se desdenhar. De qualquer forma, Felicity implica com o irmão, porque acha injusto que as atitudes infantis e inconsequentes dele, sejam aceitas apenas porque ele é homem. Mas ela, nem por isso, deixa de amá-lo ou de protegê-lo nos momentos em que ele precisa. Felicity é equilibrada e é, dos três, quem possui pensamentos mais racionais diante das coisas que acontecem.

Percy é adorável e possui várias características que são um imenso problema no século em que vive: ele é negro, é homossexual e possui uma complicação a mais, que não vou dizer qual é, porque só descobrimos lá para o meio do livro e espanta pela constatação de como tudo era atrasado naquela época. Para Percy, a tour não é apenas uma preparação, é uma despedida, porque no retorno à Inglaterra, seu destino é bastante cruel. Não, não vou dizer qual é, porque está ligado ao tal problema extra que ele tem. De qualquer forma, na Europa já não existia escravidão há mais de oito séculos, mas existia racismo. E esse é mais um dos obstáculos que ele precisa enfrentar durante a viagem.

Monty é bissexual, ele conquista e é conquistado por qualquer um que sorria para ele. Vive bêbado, vive apaixonado e vive sonhando em passar seu futuro ao lado de Percy. O pai sabe de suas fugas com rapazes e vê em espancamentos a cura para esse comportamento. Sim, ele espanca Monty para que ele deixe de gostar de rapazes. Novamente, é curioso como, mais de dois séculos depois, tem candidato à presidência do Brasil, e a maioria de seus eleitores, que pensam da mesma forma. Só demonstra como essas pessoas mantém pensamentos retrógrados e desinformados sobre como ser humano. Bem, mas voltando a Monty, ele recebe um ultimato do pai para se endireitar nessa viagem, que essa é sua última chance, do contrário, será abandonado, renegado pela família, perderá tudo o que tem. Monty não se importa, desde que descubra se Percy também o ama. E a viagem é sua chance para descobrir isso.

Como disse lá em cima, acontece um roubo logo no início, e o tom de romance muda para uma aventura. Os três são perseguidos por assassinos contratados pelo tal francês, se misturam com ciganos, cartomantes, são capturados por piratas, presos, fogem, enfim, é uma confusão atrás de outra. E no meio de tudo isso, estão os sentimentos de Monty e Percy, e também o sentimento de Felicity pelo irmão.

Neste ponto, você pode pensar que o ritmo e a finalidade da história podem ser perder, mas não, você está enganado. Toda a narrativa é construída de forma tão competente, que o trio principal jamais se perde, jamais é desviado. A autora soube inserir o romance no meio da aventura, interligando o sentimento dos personagens com os perigos que enfrentam. Até mesmo os personagens secundários são assim. Eles não são mero adereço ou ponto de ligação entre as ações, eles se tornam parte indispensável da trama. Como exemplo, posso citar um dos piratas, que conforme conhece Monty, Percy e Felicity, demonstra quem realmente é, sua essência, e tem um desenvolvimento que conquista pela sensibilidade. O mesmo acontece com os demais personagens, e isso só uma autora muito, muito competente e criativa consegue fazer.

Aliás, a construção de Monty é um caso à parte. Fica claro como ele se sente depreciado, de como pensa que não vale nada, e esse sentimento é o principal motivo que o impede de se declarar para Percy e que o compele a viver na libertinagem. Quando se pensa que não existe nada que valha a pena, se perde a vontade de ser mais do que se pensa que é.

Conheço uma máxima que diz: “os iguais se reconhecem”. Uma das partes mais sensíveis da obra, é justamente quando um dos piratas mantém uma conversa com Monty e explica como Monty é importante para os amigos, como ele consegue fazer coisas certas, como ele é inteligente, como ele é muito mais do que pensa que é. Todos os três personagens aprendem e evoluem durante e após a aventura. Principalmente Monty, que também é aquele que sofre mais, inclusive fisicamente. O final corresponde às expectativas e é delicioso, principalmente uma carta que encerra a obra.

O GUIA DO CAVALHEIRO PARA O VÍCIO E A VIRTUDE é uma das melhores surpresas literárias do ano, reunindo romance com uma aventura emocionante. Os personagens são magnificamente bem construídos, com uma sensibilidade poucas vezes vista. Todo o conjunto deixa um sorriso no leitor e o desejo de ler outras histórias do mesmo estilo. Como boa notícia, lá fora já foi lançado um segundo volume centrado em Felicity e na sua busca pelo conhecimento medicinal, intitulado, em uma tradução livre, O GUIA DA DAMA PARA A SAIA E A PIRATARIA. Ansioso por sua publicação no Brasil!


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Mackenzi LEE obteve seu bacharelado em História (durante o qual ela fez o seu próprio Grand Tour pela Europa) e é Mestre em Escrita para crianças e jovens adultos pelo Simmons College. Ela ama Coca zero, pullovers e Star Wars. Em um dia perfeito, ela pode ser encontrada aproveitando os três. Ela atualmente chama Boston de lar. Você pode encontrá-la no Twitter @themackenzilee ou acessando www.mackenzilee.com
TRADUÇÃO: Mariana KOHNERT
EDITORA: Galera Record
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 434


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