Baseada em uma ideia original de Marie Pommepuy, Fabien Vehlmann, com desenhos de Sébastien Cosset e da própria Marie Pommepuy, criou uma das HQs mais perturbadoras que eu li nos últimos anos. E isso não se deu apenas pela mistura de desenhos infantis com ações cruéis, que muitas vezes ultrapassaram o limite do vilanesco, mais acidentes mortais que não pareciam ter qualquer propósito, e sim com o teor alegórico sobre a psique humana.

Aurora é uma garota que tem a pretensão de começar a namorar o galante Hector. Em um momento em que os dois estão prestes a trocarem um beijo, o local onde estão, começa a desmoronar, e os dois precisam fugir, acabando por se perderem um do outro. Quando Aurora consegue sair e se salvar, o leitor descobre que ela e todos os demais habitantes, moravam dentro do corpo de uma menina, que agora está morta no meio de uma floresta, e que também se chamava Aurora. Mas apenas o leitor tem consciência disso, uma vez que todos os outros membros daquela comunidade, comportam-se como se fosse natural o tamanho que possuem e onde habitavam.

Aurora tenta criar uma forma de organização, dividindo a comida e arrumando moradia para todos os desabrigados, mas encontra dificuldades, uma vez que cada um deles tem uma personalidade própria, diferente das demais, bem como as vontades e os planos do que desejam fazer. Plim, o amigo mais próximo de Aurora, é um garoto egoísta e infiel, que se aproveita de qualquer deslize dos outros para ter algum benefício próprio; Zélia, uma garota bonita e manipulativa, que não tem qualquer escrúpulo para atingir seus objetivos; Jane, uma garota mais velha, corajosa, que se afasta do grupo para procurar seu próprio lugar; Hector, o objeto de desejo de Aurora e Zélia, que se mostra ser um garoto convencido e vaidoso, que não ama ninguém, além dele mesmo; e Tiana (Timothy na versão original, mas falo sobre isso mais no fim da resenha), uma garota tímida, que é insegura com sua aparência, prestativa, mas sofre de depressão e se deixa convencer de que sua vida não vale a pena.

Além desses, existem outros personagens que não possuem um nome, mas que ganham pequenos trechos narrando o aparecimento e o destino que enfrentam, como as trigêmeas que imitam uma à outra e vivem brigando; uma garota gordinha e muito maior do que todos, que só tem fome, e come até os amigos; uma menina que se esconde pelas sombras e devora imundices; um grupo de meninos que brinca de qualquer coisa, não importa o perigo; uma garota que tem uma alergia que vai se alastrando pelo corpo, sem ninguém se incomodar ou preocupar, entre outros.

A HQ apresenta uma narrativa central, entrecortada por várias pequenas sobre cada um dos personagens secundários. E devido à brevidade e ao destino que cada um deles encontra, o choque de crueldade é inesperado, vem de surpresa, sem dar tempo ao leitor para se preparar. Por exemplo, uma das personagens é comida por dentro pelo filhote de um pássaro; outra é puxada por uma formiga para dentro de um formigueiro; outra é enterrada viva; outra é levada pelo vento; e assim por diante, com mortes terríveis, que são encaradas por todos, como se fosse algo natural, corriqueiro. E, aos poucos, cada um deles vai desaparecendo, até se chegar ao clímax da história.

AURORA NAS SOMBRAS é uma alegoria sobre a personalidade humana, e a discussão que levanta é claramente inspirada no livro SENHOR DAS MOSCAS, de William Golding. Inclusive, a maior parte da narrativa da HQ, segue o mesmo caminho de desenvolvimento do livro de Golding. Nele, um grupo de crianças naufraga em uma ilha deserta, sem a presença de um adulto. Aos poucos, eles se dividem em dois grupos: um organizado e democrático; o outro autoritário e violento. Com o passar do tempo e dos acontecimentos, o grupo violento acaba por absorver o rival, menos um dos garotos, que vai contra todos para se manter íntegro ao que é correto. O mesmo acontece na HQ de Vehlmann: Aurora começa como a líder que deseja o bem, enquanto Zélia, aos poucos, vai convencendo todos a ficarem ao seu lado e a cometerem atrocidades em seu favor, até que Aurora fica sozinha.

Entretanto, o ponto que difere AURORA DAS SOMBRAS de SENHOR DAS MOSCAS, é que os personagens são aspectos de cada uma das personalidades da Aurora que morreu, eles não são indivíduos distintos, mas partes que foram separadas de um todo que se quebrou, e Aurora pequena seria a consciência, a essência, que ficou sem essas personalidades. Embora os personagens não possuam apenas um atributo específico, pela forma como eles pensam e agem, é possível identificar qual personalidade eles representam. E por isso, quando a história começa, Aurora é desprovida de qualquer característica negativa.

Essa construção, ou desconstrução, se mostra ainda mais inteligente, quando cada um dos personagens começa a morrer em situações bizarras, sendo que algumas mortes afetam diretamente Aurora, e ela começa a modificar seu comportamento, começa a compreender o que existe de certo e de errado ao seu redor, como se cada morte agregasse a ela, a característica da pessoa que morreu e que ela não possuía. Aurora começa a enxergar os momentos em que foi enganada, por quem foi enganada. Aurora reconhece a maldade das pessoas que ela pensava que eram suas amigas. E ao mesmo tempo em que ganha esse conhecimento, ela perde a linha de moralidade e passa a agir por vingança.

O enredo vai mais longe no estudo da psique humana, demonstrando, através das ações de cada um dos personagens, quais são as personalidades dominantes, e quais são as que têm mais propensão para serem dominadas. A personagem egoísta, irá conseguir ter mais recursos; a gulosa, irá consumir mais rápido esses recursos e depois se apropriar de quem ainda tem; a personagem violenta, irá atacar os mais fracos; e assim por diante. Algo parecido já foi visto no desenho animado da Pixar, DIVERTIDA MENTE, onde cada parte da mente de uma pessoa, era um personagem diferente. Só que em AURORA SEM SOMBRAS, isso é levado para o lado mais cruel do ser humano.

Ainda é curioso constatar que o único verdadeiro amigo que Aurora faz, o único que fica ao lado dela e tem um comportamento mais “humano”, é um rato que vivia na floresta. Entretanto, conforme os outros personagens vão morrendo, e Aurora tem sua personalidade alterada pelas consequências dessas mortes, eles se afastam, e no fim, ela se veste como ele, a um ponto em que em alguns quadrinhos das últimas páginas, não se distingue pelo desenho, quem é Aurora e quem é o rato.

A arte do casal Marie Pommepuy e Sébastien Cosset, que assinam a edição com uma combinação dos nomes, formando o pseudônimo de Kerascoët, tem uma inteligência própria para demonstrar as diferentes personalidades de cada um dos personagens. Por exemplo, Plim é a infância que não vê individualidade, que apenas quer as coisas, sem se importar com mais ninguém, e por isso tem um traço infantil, lateral; Jane é a personagem com aparência mais velha, e tem um traço mais sensual, mais adulto; Hector é a representação do príncipe dos contos de fadas, e seus traços lembram os desenhos desse tipo de história; Aurora é desenhada com traços que demonstram sua pureza; Tiana possui um traço mais característico da adolescência, quando surgem as dúvidas sobre nossos corpos e as inseguranças; e assim, cada um dos personagens tem traços distintos, que identificam uma idade aproximada a que pertence aquela personalidade. Tanto que os adultos, que são gigantes para a comunidade, os animais da floresta, e a menina morta, são desenhados da forma mais realista possível, totalmente diferente de todos os outros personagens.

O clímax da história não é menos surpreendente e cruel de tudo o que vem antes. Na verdade, ele é a consequência natural da soma das personalidades que Aurora recebe. E ainda traz um pequeno enigma com relação a um personagem final, um humano, um homem barbudo que vive sozinho em uma cabana, sistemático, que poderia ser o responsável pela morte da garota na floresta, um assassino, e por quem Aurora nutre uma paixão primária, cega, que explicaria o motivo da Aurora que morreu estar sozinha naquele local e também explicaria o motivo dela ter sido morta.

Por fim, preciso reclamar de dois problemas, um deles grotesco, feitos pela editora. O primeiro é sobre a tradução do título, BEAUTIFUL DARKNESS, que perde o significado dentro da história para um AURORA DAS SOMBRAS. Estranho que uma editora que tem muitos dos seus livros com títulos não traduzidos, traduz um de uma forma duvidosa.

O segundo problema é pior: a personagem Tiana, na obra original, se chama Timothy, é um personagem andrógino, porque ele possui um nome masculino, com uma aparência afeminada, que passa por problemas de aceitação, e cujo destino, que é uma das partes mais pesadas da história, é uma alegoria para os jovens que não conseguem se abrir para o mundo da forma como se sentem e como são marginalizados e excluídos por causa dessas diferenças. A editora resolveu alterar o nome para uma versão feminina, e com isso, matou toda a mensagem sobre aceitação de gênero. Inclusive, conversei com o autor pelo Instagram, Fabien Vehlmann, e ele confirmou que essa mudança foi um erro. Uma pena.

De qualquer forma, essa castração feita pela editora não tira o brilho da obra. AURORA NAS SOMBRAS é uma alegoria que disseca a psique humana de forma minuciosa, através de uma variedade de desenhos deslumbrantes, numa mistura de inocência com maldade, com um final surpreendente e cruel. Uma leitura forte, uma HQ brilhante, que incomoda, que obriga o leitor a pensar, a considerar tudo o que leu para conseguir compreender todas as mensagens, e mesmo assim, poderá não encontrar tudo o que existe espalhado pelos quadrinhos. E a edição é em tamanho maior, capa dura, papel de alta gramatura, acabamento de luxo. Pelo menos isso está sem problemas.


AVALIAÇAO:


AUTOR: Fabien VEHLMANN, nasceu a 30 de Janeiro de 1972 em Mont-de-Marsan, França, cresceu em Landes e no Saboia e estudou em Nantes (Audencia). Em 1996, participou num concurso para argumentista para a revista do Spirou, mas foi eliminado pois não seguiu as normas exigidas. Apesar dessa reviravolta do destino, Fabien não desistiu e enviou toneladas de argumentos para a revista, até que finalmente, foi aceite um ano mais tarde. O seu trabalho começou a destacar-se e, rapidamente, começou a escrever para muitos desenhadores incluindo Eric Maltaite e René Follet.
ILUSTRADORES: Marie POMMEPUY e Sébastien COSSET
TRADUÇAO: Maria Clara CARNEIRO
EDITORA: Darkside
PUBLICAÇAO: 2019
PÁGINAS: 96


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