O ano é 1968 e Brian, um agente de liberdade condicional, conhece Lillian, uma emigrante de Uganda que trabalha como secretária. Eles começam um relacionamento, casam e, nove anos depois, têm um filho, Apollo. No quarto aniversário de Apollo, Brian desaparece. Depois disso, Apollo começa a ter um pesadelo recorrente, onde Brian aparece sem rosto, no meio de uma névoa, dentro do apartamento onde mora, e o leva embora. Oito anos mais tarde, quando Apollo já não sonha mais com o pai, alguém bate na porta e deixa uma caixa cheia de pertences pessoais de Brian. Entre eles, um livro infantil antigo, que desperta em Apollo uma sede pela leitura. Ele começa a negociar livros antigos que encontra e, aos 17 anos, já é dono de um negócio razoável de compra e venda de obras raras.

Aos 34 anos, Apollo conhece Emma, uma bibliotecária. Eles começam a namorar e após Emma passar um período no Brasil, em Salvador, onde ganha de presente uma daquelas pulseiras que precisam rasgar sozinhas para conceder um desejo ao dono, logo se casam. Três anos mais tarde, Apollo e Emma esperam uma bebê. Um menino que se chamará Brian. Após a criança nascer, Emma começa a mudar de comportamento, dando a sensação de que tem uma leve depressão pós-parto. Até que uma noite, Apollo chega em casa, é agredido e preso em uma cadeira. Quando descobre quem é o agressor, entra em pânico. E quando vê que Emma, totalmente transtornada, segura seu filho e diz apenas uma frase: “Não é um bebê”, e logo em seguida faz algo inimaginável, o mundo de Apollo desmorona e entra em um verdadeiro inferno.

A palavra CHANGELING não tem tradução e remete ao folclore europeu e a crenças populares americanas, cujo significado não irei dizer aqui, porque iria estragar sua experiência de leitura. Um conselho importante: não procure o significado, leia primeiro o livro. Isso porque até mais de metade da história, o que você lê, é sobre a vida de duas gerações de uma mesma família, de 1968 a 2015, que enfrentam muitos desafios, muitas dificuldades, mas também alegrias, só que tudo envolto por pequenos acontecimentos estranhos, tão singelos, que você vai demorar para perceber. Na verdade, quando percebe, a história dá uma virada total e você é jogado em algo fantástico.

Nas páginas de CHANGELING, Victor LaValle insere referências a muitas obras conhecidas mundialmente, desde clássicos, a livros mais comerciais. Alguns são contos de fadas, como os dos irmãos Grimm, e é baseado nessas histórias, que LaValle constrói sua narrativa. E quando me refiro a baseado, me refiro ao tom cruel e assustador que elas possuem originalmente. Sim, porque metade do livro é calcado em uma realidade cotidiana de um casal que tenta manter o amor e criar uma família, a tal ponto que você se questiona se está realmente lendo um livro de terror. E quando você chega na segunda metade, cai em uma realidade saída dos mais sombrios contos de fadas, com mortes, magia, monstros, trolls, bruxas, e descobre que o terror já havia começado desde a primeira página, só que você não reparou.

Apollo é um personagem complexo, que acompanhamos desde seu nascimento, e sofre uma evolução gradativa durante a história. CHANGELING não é um romance de formação, porque o tema central é a fantasia e o terror, mas seus personagens, se isolados, fazem parte de um estudo de formação. Apollo se mantém fiel à sua essência, mas suas convicções são amadurecidas e suas ações passam a ser baseadas no desespero de salvar seu filho e a mulher que ama. Nem por isso ele é um herói perfeito, porque ele sofre com dúvidas morais, ele se questiona sobre decisões que podem não ser a mais acertadas e nem honestas, ele sente medo, e por isso recua em algumas passagens, exatamente da mesma forma que qualquer pessoa real.

Emma acompanhamos por pouco tempo, ela só aparece no início e no fim do livro, e durante todo esse tempo, até a poucos capítulos do clímax, o que é passado sobre ela, deixa dúvidas quanto à sua índole e ao seu equilíbrio psicológico. Não sabemos se ela é uma vilã ou uma vítima, e quando descobri, fiquei pensando em qual página deixei passar a dica de quem realmente ela é.

Essa é uma qualidade enorme de CHANGELING, as dicas que são deixadas por todas as páginas, que o leitor não percebe, até que elas são usadas em algum momento posterior para criar alguma situação, para revelar os vilões, os heróis e até mesmo a realidade que existe oculta. Está tudo nas páginas do livro, basta prestar atenção nas frases, nos diálogos, na descrições, como se você estivesse lendo dois livros ao mesmo tempo, um sobre uma família com problemas financeiros, e outro sobre um conto de fadas assustador.

Uma outra qualidade é a discussão social inserida no meio da fantasia. LaValle transita entre questões raciais, violência doméstica, doenças mentais, emigração e estabilidade cultural, tudo de forma totalmente inserida na fantasia. As coisas não acontecem apenas por acontecer, porque uns são os heróis e outros são os vilões. Existe toda uma área cinza que é construída e explicada em cima de décadas de sofrimento e de buscas para amenizar esse sofrimento, tudo impulsionado por negociações covardes, interesses financeiros e culturais, em lendas que são religiões e que precisam ser seguidas com base na fé e na convicção de que são certas e necessárias. Não existe nada gratuíto na história. E grande parte das tragédias que acontecem, não são causadas pelo fantástico, mas por ações totalmente humanas, muitas vezes tão cruéis e absurdas, que parecem mentira.

CHANGELING mistura uma realidade difícil e sofrida, com uma fantasia assustadora e cruel. Metade do livro tem o cunho social, e a outra metade, invade o mundo do fantástico e do terror. Quando se chega ao clímax, descobre-se que os papéis se invertem, e a realidade da primeira parte, pode ser tão, ou mais, terrível do que o terror da segunda parte. Um livro muito bem escrito, com uma história que fará você pensar durante muito tempo. Apesar do estranho e desnecessário subtítulo nacional, a edição está caprichada, com uma arte de capa que é perfeita para o que existe no miolo. Não deixe de ler!


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Victor LAVALLE
TRADUÇÃO: Petê RISATTI
EDITORA: Morro Branco
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 560


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