Embora tenha assistido ao filme baseado na HQ, apenas recentemente consegui ler O DOUTRINADOR. Na história, Sérgio Ferraz, um ex-soldado fruto de uma experiência militar dos anos de 1970, se cansa da corrupção que assola o país e flagela a população. Como resposta, ele começa a assassinar todos os políticos desonestos. Aos poucos, cria um movimento apoiado pela maioria da população, enquanto a mídia o nomeia com o apelido de O Doutrinador. Como resposta, um grupo de empresários, senadores, deputados e até mesmo a Presidência da República, contratam um outro ex-soldado para caçar e matar Sérgio.

A narrativa de O DOUTRINADOR é ágil e segue a cartilha dos gibis americanos na parte de sequências de ação. Há uma nítida inspiração em O CAVALEIRO DAS TREVAS, principalmente nas páginas em que aparecem os comentários das mídias televisivas, e em JUSTICEIRO, pela violência e pela justificativa dos assassinatos como forma de justiça, com um desejo de vingança por trás. Entretanto, o Doutrinador está longe da complexidade e das motivações do Justiceiro e do Batman.

Não existe um passado sólido de Sérgio Ferraz. Durante a história, algumas informações são jogadas para estabelecer o personagem, como ter sido o resultado de uma experiência militar, ter se apaixonado por uma guerrilheira filha de baianos e paraibanos, e começar a ganhar consciência de como fazer a diferença em um país corrupto, quando manteve conversas com um prisioneiro político de quem era cárcere. Entretanto, a duração dessas informações é a mesma deste parágrafo, ou seja, são apenas menções de memórias sem qualquer aprofundamento. E por causa dessa superficialidade, fica difícil conseguir formar uma opinião embasada que sustente a psicose do personagem.

O autor afirma em uma entrevista que o leitor não deve focar a questão política ou ideológica das ações do Doutrinador, mas em seu lado psicológico, que ele é um lunático e nada justifica o que ele faz. Entretanto esse posicionamento não existe na HQ, uma vez que a história é totalmente calcada na política e no viés ideológico, além de que em momento algum é discutida a fragilidade psicológica do personagem, nem sequer é fornecido um histórico do que o personagem viveu, para dar alguma explicação de seu comportamento. Se o autor realmente considera que as ações do Doutrinador não são corretas, ele devia ter colocado na história elementos que demonstrassem esse pensamento, mas o que fez foi o contrário, elevou o personagem ao patamar de um herói vitimista, cujos atos são inquestionáveis, necessários, e pior, imitáveis.

A narrativa trata as ações do Doutrinador como uma pressão contra a corrupção e chega a comparar os assassinatos que comete com manifestações na rua, como se ambas possuíssem o mesmo peso. Essa desvalorização da vida e das consequências de atos como assassinatos, não importa que seja a morte de políticos corruptos, é perigosa, ainda mais em um veículo direcionado, principalmente, para jovens em idade de amadurecimento, de formação de caráter e de posicionamento, que deveriam estar recebendo informações de como agir de forma responsável e efetiva, e não estímulos de como pegar uma arma e matar quem consideram bandido.

Em certa parte, o Doutrinador diz, após matar mais um político, que o sucessor deste tem a chance de ser honesto, mas que se não for, também será morto. É o discurso covarde de quem não sabe como realmente implementar mudanças na sociedade. É covarde porque elimina o problema sem resolvê-lo. O Doutrinador não é um justiceiro. Ele é um psicopata assassino. A corrupção não é combatida com assassinatos, mas com planos de governo efetivos para a educação, para a saúde, para a economia. E isso se consegue com ações que expliquem à população como se informar sobre os políticos em quem irão votar, como entrar na Internet e pesquisar o passado de cada candidato a deputado, de cada candidato a senador, de cada candidato a prefeito, governador, presidente. O voto consciente e responsável é a arma de uma sociedade democrática, não uma pistola automática.

Mas a deturpação de valores e o discurso psicótico do personagem não é restrito a ideologias políticas. Sérgio é um conservador extremista. Sua narrativa defende os marginalizados, as pessoas que vivem em comunidades, a população nordestina que vive sob a seca, mas, ao mesmo tempo, ele critica as manifestações artísticas dessas mesmas pessoas, ou qualquer posicionamento que não seja moderado e conservador. Na HQ tem uma página inteira onde ele exalta a música ouvida pela classe média, enquanto critica, de forma indireta, a música e a dança da “favela”. Ele defende quem se enquadra em sua visão limitada e preconceituosa. Quem estiver fora desse círculo míope, está errado e corrompe a sociedade.

A edição de O DOUTRINADOR abre com um prefácio onde está escrito que o personagem é “…o eco da indignação do povo brasileiro, povo do qual você faz parte”. Não. O povo não quer matar, o povo quer melhorias concretas, o povo quer hospitais melhores, quer escolas melhores, quer alimentação melhor. O povo não consegue isso matando, mas sendo educado e participativo politicamente, conscientemente. Isso não se consegue com produtos que incentivem a violência. Com gibis que, página após página, mostram um personagem matando e matando e matando, com um discurso vitimista, simplista, irresponsável e, novamente, covarde. O Doutrinador se diz contra a corrupção, enquanto corrompe aquilo que o povo, na sua maioria, ainda consegue manter: a integridade.


AUTOR: Luciano CUNHA
ILUSTRADOR: Luciano CUNHA
EDITORA: Redbox
PUBLICAÇÃO: 2015
PÁGINAS: 84


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