Lydia é dona de uma pequena livraria em Acapulco, uma cidade litorânea do México. Ela tem um filho pequeno, de 8 anos de idade, chamado Luca. E é casada com Sebastián, um jornalista que investiga as ações dos cartéis no país. Certo dia, um homem entra na livraria e compra alguns livros que eram os favoritos de Lydia, mas que ninguém nunca comprava. Essa coincidência é o ponto de partida para a formação de uma amizade que cresce com o passar dos dias. Pelo menos pelo lado de Lydia. Para Javier, o tal homem, Lydia se transforma em algo mais, em uma companhia com quem ele pode se abrir, falar sobre assuntos pessoais e sobre livros. Ele é viúvo e tem apenas uma filha, que estuda no exterior. E ele acaba por se apaixonar por Lydia.

Um dia, por acaso, após o jantar e após Sebastián comentar que estava para concluir uma matéria extensa sobre o líder de um dos maiores e mais perigosos cartéis do México, Lydia folheia o texto do marido e encontra a foto do tal chefe narcotraficante. Para seu terror, ele é o homem gentil e inteligente que a visita semanalmente na livraria, Javier. Lydia conta tudo para Sebastián e decidem que a matéria deve ser publicada, apesar do perigo que isso representa para Lydia. Ela não está totalmente convicta de que Javier é o monstro que pintam, não é possível que possa existir uma pessoa com dois lados tão distintos.

Quando Javier visita Lydia dias mais tarde, ela conta que sabe quem ele realmente é, mas isso não abala os sentimentos que Javier nutre e ele continua suas conversas sem demonstrar qualquer insatisfação, enquanto Lydia não consegue apagar a admiração que sente pela sensibilidade e inteligência de Javier. Isso até que a matéria é publicada, o que causa uma tragédia do lado de Javier, que se descobre apenas na metade do livro, e provoca sua vingança, que se materializa no assassinato de 16 pessoas da família de Lydia, inclusive a de Sebastián. Para salvar sua vida e a de Luca, Lydia foge de Acapulco, na direção dos Estados Unidos, com a finalidade de chegar na cidade de Denver, onde moram alguns parentes, sempre sendo perseguida pelos homens de Javier.

Há duas formas de apreciar TERRA AMERICANA: a primeira é se você não tiver conhecimento da realidade dos imigrantes mexicanos, o horror que é tentar entrar nos Estados Unidos de forma ilegal, a realidade dos cartéis de narcotraficantes, a vida social e política, entre outras informações, o que compreende a gigantesca maioria dos leitores; a segunda é exatamente o contrário, você tem todos, ou alguns, desses conhecimentos. Se você fizer parte da primeira turma, você irá gostar do livro, uma aventura de perseguição, com momentos tensos, uma torcida pela salvação de Lydia e Luca. Se você for da segunda turma, compreenderá perfeitamente toda a polêmica que girou em torno de seu lançamento e das declarações feitas pela autora, independentemente da aventura que ele proporciona.

TERRA AMERICANA sofreu, e ainda sofre, críticas severas em relação à pouca verossimilhança de sua narrativa, à superficialidade da personagem principal, às incorreções sobre as localidades e sobre a cultura do México, ao mau uso do dialeto, às incoerências das ações do povo, e principalmente sobre a autora em ser uma americana que não domina o assunto, que é a emigração dos mexicanos para os EUA, e apenas ter se apropriado de algo sério para construir uma ficção e vender, ofendendo quem vive o drama na pele. Não considero que seja um problema escrever sobre algo que não é seu por natureza, desde que seja feito com propriedade e um conhecimento profundo.

Eu também não tenho qualquer conhecimento sobre o tema que o livro aborda, a não ser aquilo que acompanho pelas notícias nos jornais e Internet. Eu faço parte da primeira turma. Não sou capaz de avaliar e apontar onde estão os erros, e por isso procurei quem soubesse. No Brasil, encontrei apenas um texto com profundidade sobre os problemas do livro, que você pode ler aqui. Ele é extenso, bem construído, com exemplos, com detalhes, com partes que tornam claro o quanto o livro ofende as pessoas que realmente possuem propriedade e lugar para o tema, embora na parte final, também fique claro o desprezo que a colunista sente pelo livro e pela autora, algo exagerado e que destoa da sobriedade de todo o resto.

Após a leitura desse texto, eu comecei TERRA AMERICANA e tentei encontrar os problemas apontados. E é fácil encontrar, quando você sabe o que procurar. Realmente a personagem principal, Lydia, se parece mais como uma americana que vive no México. Tem razão quem aponta que os diálogos reforçam essa ideia, uma vez que são feitos em inglês com a adição de palavras no dialeto local (na tradução brasileira, palavras em português, claro, com a mistura do espanhol mexicano). Se a história se passa no México, se os personagens são mexicanos, não há qualquer motivo lógico para essa mistura, tudo deveria ser uma tradução única, sem essa diferenciação, o que só tem sentido se Lydia fosse americana, mas não é.

Tem uma passagem do livro O CAÇADOR DE PIPAS, de Khaled Hosseini, em que o personagem principal, quando criança e acompanhado pela mãe, precisou fugir do Afeganistão dentro do tanque de um caminhão de combustível, ou de um trem, não lembro bem qual deles. A descrição que o personagem faz de todo o trajeto, bem como das condições dentro do tanque cheio de pessoas, é um dos trechos literários mais duros, marcantes, tristes que já li. E por conta disso, ficou marcado em minha memória. Eu não senti essa verossimilhança no terror que Lydia e Luca enfrentam dentro de um trem a caminho dos EUA. Toda a narrativa é em terceira pessoa e feita de forma distante o suficiente para se tornar superficial. Isso não transforma a história em algo ruim, só não é tão tensa como poderia ser ou como eu esperava que fosse. Existem outros problemas, mas como disse, não tenho propriedade para discutir sobre. E se fosse uma história que não se apropriasse do drama real de milhares de pessoas, e não tivesse usado desse drama como enfeite na festa de lançamento (um muro com arames farpados enfeitavam as mesas do salão de festas), ela passaria despercebida e não teria causado todo esse barulho negativo.

Entretanto, a coisa meio que fugiu do controle e caiu em um terreno perigoso. A geração atual, fincada na Internet, tem atitudes que não condizem com a liberdade que usufruem. Como disse lá atrás,eu encontrei apenas um texto sério sobre os problemas de TERRA AMERICANA, porque todos os outros que li, são rasos, paranóicos, e alguns ferem a liberdade de expressão, liberdade essa que eles próprios utilizam, exigindo que o livro seja boicotado, que ninguém compre, soltando brados e bandeiras de indignação e autoridade que não possuem, com indiretas contra a editora. TERRA AMERICANA sofre dos mesmo problemas de muitos filmes americanos, e apenas para citar um dos mais recentes, RAMBO 5 trata o México e todo o seu povo e cultura com a mesma ignorância. Por exemplo ao utilizar a tão famigerada troca de paleta de cores nas cenas dentro do país, apenas para acentuar uma decadência em detrimento de cores vivas do lado americano. Não estou querendo dizer que se deva aceitar apenas por ser uma constante nas produções americanas; estou dizendo que há uma grande distância entre criticar e boicotar.

Nem mesmo a autora da resenha citada, apesar de toda a sua indignação, sugeriu que o livro fosse boicotado, que as pessoas fossem privadas da opção de lerem e terem opiniões sobre o assunto. Ela lamenta que o livro tenha uma visibilidade tão grande, quando autores nativos e com propriedade de fala, com obras melhores e mais profundas, não consigam o mesmo, apenas por serem de nacionalidade diferente da americana. Entretanto, os “donos da verdade absoluta” no Brasil se acham no direito de ditarem o que o leitor pode ler ou não ler, sendo que eles também não possuem local de fala sobre o assunto, apenas fazem barulho para convencerem o público de que possuem e criarem visualizações. Ninguém tem o direito, em uma democracia, de levantar bandeiras de boicote sobre um livro, uma obra de arte, um filme, uma série, qualquer representação cultural e artística, apenas porque não concordam com ela, ou porque ela não transmite a total realidade de uma situação. As pessoas possuem liberdade para avaliarem, sem que tenham esse direito básico cancelado por outros. Forme uma opinião baseada em conhecimento e não no que outros dizem, por mais que eles gritem.

TERRA AMERICANA pode ser um livro problemático, mas recomendo que você leia assim mesmo, que tenha sua opinião embasada no que você identificou na leitura, que leia o texto que referenciei nesta resenha, que aprenda sobre o que é imigração, como funciona a política dos EUA sobre a imigração, qual a verdadeira realidade do México, se instrua, não se deixe influenciar por postagens que disseminam ódio e censura, tenha a sua liberdade de escolher e pensar. Atualmente já estamos cheios de pessoas que seguem brados de forma cega pelo país, não se transforme em mais uma. E se você não quiser se aprofundar, se quiser apenas uma leitura para passar o tempo, uma aventura sobre a sobrevivência de uma mãe e seu filho, então tenha a liberdade de fazer isso e a liberdade de gostar do livro.


AUTORA: Jeanine CUMMINS
TRADUÇÃO: Flávia ROSSLER, Cássia ZANON e Maria Carmelita DIAS
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2020
PÁGINAS: 416


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