Vic Van Allen tem 36 anos, casado com Melinda, uma mulher exuberante. Eles tem uma filha, Trixie, de 6 anos de idade. Donos de uma situação financeira estável, principalmente devido ao recebimento de uma herança, Vic montou uma pequena editora dedicada a edições de luxo. A vida é preenchida por coquetéis nos fins de tarde, programas culturais em Nova York, e em pequenas festas com os amigos e vizinhos. Quem observa de fora, poderia dizer que é uma vida perfeita, se não fosse a estranheza da indiferença, ou passividade, de Vic diante dos casos extraconjugais de Melinda.
A cada festa, Melinda leva o amante do momento, constrangendo os anfitriões, que estendem a hospitalidade a esses homens, como sinal de respeito e consideração a Vic. Melinda, no entanto, é uma mulher fascinante, que sabe animar uma festa, apesar de beber além da conta. Em uma dessas ocasiões, o amante atual de Melinda se afoga na piscina, sem qualquer testemunha. Consternada, Melinda acusa Vic de assassinato, mesmo sem ter qualquer prova. E como forma de vingança e de justiça, ela passa a espalhar pela cidade,Little Wesley, o que ela acredita que o marido fez. Mas isso não a impede de arrumar outro amante. E pouco tempo depois, outra morte acidental acontece.
EM ÁGUAS PROFUNDAS foi publicado em 1957 e é o quinto livro escrito por Patricia Highsmith, em sequência a dois estrondosos sucessos que renderam adaptações famosas para o cinema: PACTO SINISTRO, dirigido por Alfred Hitchcock, em 1950; e O TALENTOSO MR. RIPLEY, dirigido por Anthony Minghella, em 1999, com Matt Damon. Embora seja histórias completamente diferentes, os três livros têm algo em comum: personagens principais masculinos que ganham a empatia do leitor, mesmo sendo psicopatas assassinos, e personagens femininas que são as verdadeiras heroínas das histórias, mas devido à indução da narrativa, somada ao machismo estrutural, são transformadas em vilãs que merecem o que acontece com elas.
Patricia Highsmith nasceu em 1921, no meio de uma família desajustada, onde a mãe a abandonava ou a levava através de casamentos tumultuados. Na adolescência, reconheceu seu amor pelo mesmo gênero, o que para a época, era algo sem solução. Já adulta, mudou-se para a Europa e passou a ter uma vida solitária. Como pessoa, era descrita como “cruel”, “perversa” e “brilhante”. E todos os seus protagonistas, parecem carregar essas mesmas características.
A narrativa de EM ÁGUAS PROFUNDAS é feita em terceira pessoa, de forma totalmente imparcial, distante, mas ela se foca apenas em Vic, propositalmente. O leitor nunca sabe o que Melinda pensa ou o que Melinda faz quando Vic não está presente. E Vic nunca faz ou pensa de forma maquiavélica. Pelo contrário, ele é dono de uma calma impressionante. Mesmo quando ele assiste a esposa dançar e flertar com outros homens. Mesmo quando esses homens puxam conversa com ele, numa tentativa de compreender o motivo dele ser tão passivo, não demonstrar qualquer descontentamento com o flerte. E para cada um desses flertes, dessas “traições”, Vic tem pensamentos e atitudes complacentes, ele reconhece sua conivência e até mesmo sua permissão. Aliás, em diversos momentos, existe até mesmo um incentivo.
Somado a esse comportamento, há as reações dos amigos. Eles tentam compreender a relação de Vic com Melinda, a sentem compaixão e admiração pelo controle de Vic diante das traições. Não o vêem como alguém fraco, porque a vida que Vic leva, sua inteligência e competência, provam o contrário. Eles enxergam em Vic, alguém que ama a esposa de uma forma, que é incapaz de a prejudicar por causa de sua “infidelidade” e de seu comportamento “condenável”. E coloco essas duas palavras dentro de aspas, por um motivo: nenhuma delas é verdadeira.
Existe um acordo entre Vic e Melinda: eles reconhecem que o casamento não deu certo, mas não querem ceder ao divórcio. Concordam que seria traumatizante para Trixie, além do escândalo que provocaria na sociedade de Little Wesley. Vic e Melinda sequer dormem juntos. Ele se muda para um cômodo sobre a garagem, e aceita que Melinda tenha seus casos, desde que não o faça de forma exposta demais. Mas essa combinação fica só entre eles. E apesar dela existir, e apesar de Vic aceitar o início dos relacionamentos que Melinda constrói com outros homens, aos poucos, Vic começa a se sentir incomodado.
É preciso muito cuidado ao ler EM ÁGUAS PROFUNDAS. A narrativa, como disse, quando se aprofunda apenas em Vic, induz o leitor apenas para o lado dele. E a genialidade é tornar as ações de Vic, em reações. Ele aceita os namoros de Melinda, e o leitor segue essas relações pelo ponto de vista de Vic. Ele nunca condena Melinda, ele concentra suas observações nas atitudes dos amantes, transformando-os em predadores, em vilões, que se aproveitam da complacência de Vic, para abusar de sua esposa. E a narrativa não desperta o sentimento de repulsa em Vic de início, ele vai sendo despertado aos poucos, como resultado da soma de diversas situações que crescem como um balão de ar, até explodir. E quando Vic deixa de ser passivo, o leitor já está do lado dele.
Vic não é maquiavélico. Ele não planeja os assassinatos. Na história, Melinda tem três amantes. Todos eles, Vic conhece com simpatia. Conforme a relação de Melinda com os amantes se torna mais intensa, Vic começa a se sentir incomodado. Mas em nenhum momento, ele tem pensamentos homicidas ou cria planos de assassinato. De uma ora para outra, quando surge a oportunidade, Vic age. Como um impulso. Sem remorsos, sem demonstrar qualquer sentimento com relação ao que fez. E como existe um espaço de vários capítulos entre a apresentação do amante, passando por todos os encontros de Melinda assistidos por Vic, quando Vic toma uma atitude, existe uma empatia temporária pelo que ele faz. E isso é horrível de se perceber.
Mas não é só a empatia em Vic que Patricia Highsmith usa para manipular o leitor. O machismo estrutural é outra arma usada pela autora para tornar o leitor conivente. A linha de raciocínio para isso, é simples: Vic é inofensivo, atencioso, presente, bom pai, um homem exemplar. Melinda é quem bebe demais, quem vive em festa, quem procura outros homens, quem usa esses homens para humilhar Vic diante dos amigos. E os amigos, enxergam o mesmo que o leitor: um homem injustiçado pela infidelidade da mulher.
Agora vamos mudar a perspectiva: Melinda é uma mulher jovem, linda, que não tem um retorno emocional do esposo, que já reconheceu que seu casamento terminou, mas que não pode se desquitar. Ela entra em acordo com ele sobre sua vida sentimental, e ele concorda. Ela se relaciona com outros homens, com o aval do marido. Ela não faz nada de errado. E quando Melinda suspeita, acredita, que Vic matou, ela busca por justiça. Mas são poucos os que acreditam nela, afinal ela é mulher, e uma mulher infiel. E Vic é um homem tão atencioso! Um homem. Eu poderia dizer que isso é mais devido à época em que se passa a história, década de 1950, mas não seria verdade. Ainda hoje, pleno 2020, seria o mesmo julgamento. E isso é tão verdade, que eu mesmo me vi criticando e julgando Melinda até pouco mais de metade da história. Só quando percebi a manipulação da narrativa, consegui abrir os olhos. E confesso, me senti péssimo.
Não pense que Patricia Highsmith escreveu EM ÁGUAS PROFUNDAS de forma machista, pelo motivo de concentrar a narrativa apenas no homem, e transformar a mulher em uma vilã, mesmo sem ela ser. Patricia Highsmith joga na cara do leitor, o próprio preconceito, o próprio machismo, no clímax da história. No final, na últimas páginas, ela praticamente grita: “Viu? Viu do lado de quem você estava? Viu quem você defendeu? Percebe que você se tornou um cúmplice? Você foi conivente! E olha o que aconteceu! Parabéns! Se sinta mal, você merece!”. E, acredite, você irá sentir um enorme peso na consciência nessas últimas páginas.
EM ÁGUAS PROFUNDAS é um livro com uma narrativa brilhante. Uma história simples, que demonstra todo o preconceito e o machismo que possuímos dentro de nós, mesmo sem perceber. Com um personagem que representa bem um total psicopata, que utiliza de sua normalidade, para se parecer inocente e ganhar a empatia do leitor, enquanto nas sombras, no seu íntimo, é um monstro assassino, sem remorsos ou qualquer outro sentimento. Que livro!
AUTORA: Patricia HIGHSMITH
TRADUÇÃO: Roberto MUGGIATI
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2020
PÁGINAS: 304
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Eu me lembro de ver este livro chegando recentemente na caixinha de sonhos da Editora,mas essa é a primeira resenha que leio sobre ele e estou aqui sem saber o que pensar ou fazer.
Tá, primeiro é colocar ele na listinha de mais desejados e a segunda é ficar remoendo a relação desse casal tão incomum e os crimes, a aceitação ou os sentimentos e as mentes(doentias?).
Espero ler em breve!!!
Beijo
Ele é total psicopata!!!
Acho que ambos são perdidos e com serios desvios psicológicos.
Ela quando o vê com outra também sente ciúmes e reage. Entao, sera tão inocente assim? A conduta de traições, por mais que aceita pelo marido, não a força a leva-los a casa deles e, de certa maneira, ela nao é forçada a humilhar o marido, como faz. Acho que não é apenas machismo que levam a ter certa empatia por ele.