Acho difícil existir alguém que não conheça Peter Pan. Criado por James Matthew Barrie, em 1904, como uma peça de teatro e com o título de PETER PAN OU O MENINO QUE NÃO QUERIA CRESCER, só virou romance em prosa sete anos depois, em 1911. Existem várias adaptações para o cinema, existem continuações da história, existem quadrinhos e desenhos animados, enfim, uma série de subprodutos que tentam evoluir ou completar a história original.

ATENÇÃO, a partir daqui, esta resenha pode conter alguns pequenos SPOILERS, mas nada que atrapalhe leitura ou revele qualquer surpresa 😉

Não vou falar da história de Pan neste texto, embora ele tenha seu papel de destaque na obra de Jodi Lynn Anderson. Farei isso um outro dia, quando resenhar o livro dele. Quero mesmo é falar de duas garotas apaixonantes: Tiger Lily e Sininho. Este livro é sobre as duas, de como elas se conheceram, de como elas conheceram Peter Pan e de como elas perderam Peter Pan. E isso não é spoiler, todos sabem de Wendy e que é ela quem ele escolhe. Agora, uma coisa que eu não esperava, é que a personagem principal, apesar do título, é a pequena fada e não a índia rebelde.

Os pensamentos da fadinha, suas reflexões, suas deduções, suas ações, tudo é muito bem narrado e carregado de emoção. Ela não fala, nem solta aquele pozinho que faz voar, mesmo porque ninguém voa nesta versão, mas ela faz o leitor voar em alguns trechos, que chegam a ser pura poesia de tão belos. Principalmente quando ela descreve Tiger Lily, Peter Pan e a relação dos dois.

A escrita da autora é linda, é comovente, é sensível, é melancólica, mas de uma forma dosada, em determinadas partes apenas. Acredito que a excelente tradução seja parcialmente responsável por isso. Mas uma narrativa assim, não seria marcante sem uma história do mesmo nível. E tudo na história é impecável, está bem construído, está perfeitamente amarrado e coerente. Isso é importante, porque TIGER LILY trata das consequências das escolhas. Desde a primeira página, tudo o que se segue, é consequência de algo que foi decidido por um dos personagens.

Sininho tem sua narrativa graças à escolha de ir um pouco além do lado da ilha onde morava e acaba conhecendo Tiger Lily. Decide, então, viver na aldeia. Ela fica admirada de ver como Tiger é diferente. Não fisicamente, mas em atitude. Em quase toda a história, por seu tamanho, ela é uma testemunha passiva, ignorada por todos. Até que em uma determinada parte, quando ela está em perigo, ela é salva de surpresa e ouve de quem a salva, uma confissão que cria um sorriso no leitor.

Tiger Lily foi adotada por Tic Tac, o xamã da aldeia, um índio que usa vestidos de índia e se comporta como uma índia. A relação dos dois é impregnada de ensinamentos e sabedorias, mas também cercada por regras de comportamento perante os costumes. A decisão de Tic Tac, no passado, de casar Tiger com Gigante, um homem enorme, bruto, ignorante, filho de Tia Chama, uma das matronas da aldeia, resulta em duas futuras tragédias.

Gigante é repugnante, um monstro, que se revela quando decide atacar uma personagem à beira do rio e a estupra. Essa sua decisão tem consequências, no fim da história, de uma forma surpreendente. Ele é a representação do homem obsceno, machista, que se acha dono da mulher e dono da razão. É o filho protegido por uma mãe que não vê defeitos, ou se vê, os ignora. Aquela mãe que protege pelos motivos errados e destila todo o seu ódio, todas as suas frustrações, em quem ela não consegue domar, em Tiger Lily. Todos os trechos que envolvem Gigante e Tia Chama, são, juntos, uma mensagem direta a todos os homens que se acham mais pelo seu gênero e não por seu caráter.

Tia Chama, a mãe de Gigante, é uma megera no sentido pleno da palavra. Ela decide que o filho deve casar com a filha do xamã, para provar que ela pode. Para domar Tiger Lily, para acabar com sua rebeldia e sua vontade de viver. Para se mostrar superior, para deixar claro à aldeia que ela pode mais. É uma decisão que se mostra errada antes mesmo da metade do livro, quando suas ações crueis se voltam contra ela mesma. É o primeiro trecho do livro que demonstra a densidade e a complexidade da história.

Logo no início do livro, acontece um naufrágio, com um inglês sobrevivente. O povo da aldeia não quer ajudar o inglês, com medo de que “a doença do envelhecimento” pegue neles, e eles comecem a envelhecer de novo. Mas Tiger Lily decide que deve ajudar e salvar o homem. Essa decisão é a mais importante da história, porque tudo o que acontece depois, é consequência desse ato.

O inglês, quando curado, decide que pode ajudar a aldeia, como forma de pagamento. Ele é um homem bom, cheio de boas intenções, mas é um homem da civilização, é um homem branco, é um homem. E por isso, tem todos os preconceitos inerentes à espécie e à época. Sua outra decisão de educar os índios, torná-los civilizados, e mudar seu cabelo, resulta na parte mais chocante, triste e desesperadora de todo o livro. É difícil não chorar quando se lê a consequência desse ato.

Por ajudar o inglês, Tiger Lily conhece Peter Pan e decide aceitar seu convite de se integrar aos Meninos Perdidos. Essa decisão muda Tiger para sempre, faz florescer o amor por alguém que não pode ser amado, muda sua forma de ver o mundo, cria nela uma esperança eterna, que nunca morre, e, por isso mesmo, a irá fazer sofrer para sempre.

Peter Pan, para se exibir, leva Tiger Lily até perto dos piratas e mata um deles, enquanto Tiger Lily deixa um outro fugir. Smee. E essa decisão, faz com que Smee, um assassino psicopata, fique obcecado com a índia e comece a elaborar um plano a longo prazo, mesmo contra as ordens de seu capitão, para matar a pequena índia.

Quando outros navios chegam à Terra do Nunca, Peter Pan decide ir até eles, e isso faz com que ele conheça Wendy. A paixão é imediata. Essa decisão irá fazer o que o Capitão Gancho não conseguiu. Também resultará na conclusão da história, uma conclusão realista, que aperta o coração, mas que demonstra o quanto pode ser duro crescer, e o quanto pode ser duro amar.

Temos outros personagens importantes, como Seiva de Pinheiro, a sombra de Tiger Lily, que sonha com o dia que será visto por ela como algo mais do que um amigo. Temos também a fofa da Olho da Lua, uma índia frágil e doce, amiga de Seiva de Pinheiro, que sofre um ataque covarde e que é responsável por conseguir dar um final feliz para uma situação que achávamos que não teria um final feliz. Todos eles, de forma direta ou indireta, são importantes e interferem no desfecho da história.

Mas a trama central fica mesmo em Sininho e Tiger Lily. As duas são o centro de tudo. O amor que sentem por Peter é igual, do mesmo tamanho, não tem fim, porque elas não são correspondidas na mesma medida. Ao contrário do que você lê nos romances, o amor entre um homem e uma mulher não é eterno. Não da forma como ele nasce. Você pode amar e ser amado pela vida toda, mas, com o tempo, esse amor vira um sentimento afetivo. Quando você ama e não é correspondido, o amor que você sente não evolui, ele fica parado no tempo, sempre aguardando. Esse é o carma de Sininho e Tiger Lily no livro. E se você ler, vai entender melhor ao que me refiro.

Entretanto, Peter não tem culpa de não amar. Ele não ama ninguém plenamente, e ama todos plenamente. Peter não é apenas um garoto rebelde e egoísta, ele é a materialização da inocência e da inconsequência infantil. Não existe maldade em Peter, mesmo quando ele faz maldades. Para você compreender, imagine uma criança que se aproxima de uma janela aberta do alto de um edifício e se pendura. Ela não tem noção do perigo, ela não sente medo, até que é tarde demais. Ou quando você pergunta algo para uma criança, e ela responde de forma sincera, até chocando ou sendo cruel. Ela não faz deliberadamente, ela faz porque não tem noção, ela não tem uma balança moral para pesar o que diz, o que pensa e o que faz. Peter Pan é puro dessa forma. Ele não se lembra de como chegou à ilha, ele não se lembra dos pais, ele apenas existe. Por isso Tiger Lily se apaixona por ele, por isso Sininho se apaixona por ele, por isso as sereias são apaixonadas por ele, por isso o Capitão Gancho o inveja, porque ele representa o que fomos um dia, ele representa a alegria que perdemos quando viramos adultos. E por causa disso, ele não pode corresponder ao amor de uma única pessoa. O que não impede que quem o ame, sofra.

TIGER LILY é um livro tenso, pesado, com partes que chocam, e cheio, abarrotado de mensagens, de ensinamentos, de lições. Ele fala sobre liberdade de escolhas, empoderamento, feminilidade, machismo, abuso, violência, homofobia, religião, paixão, egoísmo, vingança, inveja, altruísmo, arrependimento, amor. São tantos temas, tanta coisa para se abstrair de uma história curta, que no fim, quando viramos a última página, ficamos com a sensação de que finalizamos algo único, algo precioso, um daqueles livros que teremos na nossa estante para sempre, e que sempre que olharmos para ele, nosso coração irá acelerar. Não por tristeza, ou mesmo por alegria, mas pela plenitude, pelo orgulho de termos lido algo que nos modificou.

Depois de ler até aqui, você já percebeu que TIGER LILY é um livro único por ele mesmo. Apesar de aproveitar personagens centenários que firmaram lugar no imaginário dos leitores, a autora conseguiu criar uma história ímpar, diferente de todas as outras que existem. Abaixo, coloquei dez pontos de destaque dos principais personagens e a forma como eles são diferentes das versões anteriores. Também são dez motivos para você não deixar de ler este livro, além de todos os que escrevi acima.

DEZ PERSONAGENS QUE VOCÊ NÃO ESQUECERÁ

CAPITÃO GANCHO é um inglês educado, calculista, autoritário quando está sóbrio, que se transforma em alguém cruel, violento e imprevisível quando está bêbado. Ele não perdeu a mão na boca de um crocodilo, mas, sim, de uma forma mais mundana, quando sequer era um capitão. Ele é magro, um líder discreto, que vê em Pan um algoz que o tira da mesmice de sua vida.

SMEE não é aquele personagem bobalhão dos desenhos animados da Disney. Ele é um homem pequeno, com problemas psicológicos, esquizofrênico, um assassino. Da mesma forma que um serial killer, ele fica obcecado em matar Tiger Lily sem qualquer motivo racional. Apenas sente que precisa, desesperadamente. Ele é o segundo personagem do livro que mais mete medo.

GIGANTE é o índio, filho de Tia Chama, a quem Tiger Lily é prometida em casamento. Ele é nojento, enorme, um estuprador, que ataca uma outra personagem do livro de forma covarde em um dos trechos mais tensos do livro. A forma como Tiger Lily lida com ele, demonstra a força que ela tem, e o destino desse personagem repulsivo, já quase no fim do livro, faz o leitor dar pulos e bater palmas de alívio. Ele é o personagem que mais mete medo.

SININHO é apaixonante. Ela é a narradora da história. Acompanha Tiger Lily desde o primeiro momento em que a vê, porque enxerga nela algo que não conseguiu enxergar em mais nenhum humano. Ela se apaixona por Peter Pan, da mesma forma que Tiger Lily, mas mantém sua integridade, mantém sua amizade com a jovem índia, e torce pelos dois durante toda a história, mesmo sofrendo com isso.

PETER PAN não voa. A autora manteve todas as suas características, menos o poder de voar. E por todas as características, me refiro às originais, onde ele mata sem remorso, por diversão. Sim, ele é essa versão de Peter Pan. E no fim da história, a decisão de Peter também é diferente. É uma parte que dói o coração, que arranca lágrimas. Muitas.

TIGER LILY não é filha do chefe e nem uma princesa índia. Ela foi adotada por Tic Tac, um índio que gosta de se vestir de mulher e que é o xamã da aldeia. Ela não é tão delicada como no original, mas uma garota rebelde, forte, que enfrenta qualquer um para conseguir o que deseja.

TIC TAC é a personagem cuja história chocará você. Sério. Ela representa a sabedoria da aldeia, aquela que mantém as tradições e mantém o povo unido. Ela, mesmo odiando, mantém a sua palavra de Tiger Lily, sua protegida, se casar com Gigante, por mais repulsivo que isso seja. A conclusão de sua história é injusta, terrível, mas com uma simbologia que fará você pensar bem sobre seus próprios preconceitos.

O INGLÊS é um náufrago que é cuidado por Tiger Lily, mesmo ela correndo o risco de pegar a doença do envelhecimento. Nós torcemos por ele por quase todo o livro. Até que ele vai para a aldeia e leva com ele todo o preconceito do homem branco. Os atos dele, mesmo que feitos com boas intenções, são rodeados pelo ódio homofóbico e machista que temos até hoje em dia. E isso resulta na parte mais chocante de toda a história.

WENDY não é sequestrada por Peter, mas vai até a Terra do Nunca em um navio que vem resgatar o inglês. É assim que ela conhece Peter, e é assim que eles se apaixonam. Embora ela mantenha a doçura e a beleza da obra original, ela é o oposto de Tiger Lily. E quando a autora compara as duas, fica claro que uma garota para ser bonita, não precisa ser loira, de pele clara e olhos azuis.

AS SEREIAS são representadas como criaturas traiçoeiras, que não exitam em matar, se assim elas acharem que ganham alguma coisa. Todas apaixonadas por Peter, sempre que uma delas aparece, o leitor sabe que algo terrível vai acontecer.

O CROCODILO do relógio está na obra. Mas a forma que ele passa a fazer o famoso som de tic tac, está ligado a outra personagem que não o Capitão Gancho. E acho que você já consegue adivinhar qual.

Sim, são ONZE na verdade. Não sei contar. Fazer o quê? Ah, existe uma carta no fim do livro, que você irá ler várias vezes. Várias, várias…


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Jodi Lynn ANDERSON é autora bestseller do New Yourk Times, mora com seu marido, filho e um cão melodramático em Asheville, Carolina do Norte, uma cidade que pareceter sido fundada por elfos. Enquanto crescia, morou em uma infinidade de lugares ao redor do mundo, mas seu verdadeiro lar durante a infância foi uma cidade ao norte de Nova Jersey, onde passou muito tempo caminhando pela floresta com seu gato, olhando as nuvens e brincando de faz de conta.
TRADUÇÃO: Cláudia Mello BELHASSOF
EDITORA: Morro Branco
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 316


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