Gustav III reinou na Suécia por 21 anos, de 1771 a 1792, época em que a Europa assistia à Revolução Francesa, que se estenderia até o ano de 1799. Durante um baile de máscaras, há uma tentativa de golpe e Gustav é ferido. Ele consegue impedir o levante, mas nos treze dias seguintes, o ferimento infecciona, algo comum, uma vez que ainda não existiam antibióticos, e ele morre de sepse, uma condição que surge quando a resposta do corpo a uma infecção danifica os tecidos e órgãos. Sem regente, a Suécia fica nas mãos de um conselho composto por magnatas, cujo principal representante era o Barão Gustaf Adolf Reuterholm, um fervoroso opositor ao falecido rei Gustav. É nesse cenário de caos europeu, de intrigas, mortes, doenças, que se passa a história de 1793, o melhor livro do ano até agora, e um dos melhores thrillers que eu já li.

Mickel Cardell é um sentinela que lutou na guerra e teve parte do braço amputado. Um homem grande, truculento, rude, que vive de forma degradante, entre momentos de muita bebida e outras em que tenta cumprir seu papel no trabalho, enquanto procura esquecer as dores e os traumas do passado. Certa noite, algumas crianças o chamam porque encontraram um corpo boiando no lago Ucharia, que fica bem no centro de Estocolmo. Cardell resgata o defunto, um homem de cabelos lisos, claros, que devia ter sido bonito quando vivo, mas que teve as pernas, os braços, a língua e os olhos arrancados ainda em vida, por um período que se estendeu por vários meses.

Cardell, apesar de sua truculência, é um homem inteligente e justo. Ele fica intrigado pelo motivo que levaria alguém a torturar um semelhante com essa quantidade de ódio. E mesmo rodeado pela indiferença, ele espera a chegada do encarregado da investigação para entregar o corpo, repassar as informações que possui, na esperança de ter alguma serventia para a solução do caso. Depois, ele pode voltar para sua vida miserável de bebidas e pobreza.

Cecil Winge é um advogado que já prestou vários serviços e favores a John Norlin, o chefe da polícia de Estocolmo. Winge abandonou a esposa grávida e vive de forma isolada em uma pensão. Os motivos que o levaram a isso, são explicados aos poucos durante a história, fazendo o leitor mudar de opinião sobre o personagem várias vezes. São motivos tristes, que demonstram o quanto Winge é uma pessoa correta e que é capaz de se sacrificar em prol de quem ama, mesma não tendo o mesmo retorno. Além de tudo isso, ele está em um estágio avançado da tuberculose, doença que na época era mortal e sem cura. Winge tem plena consciência de que seus dias estão contados. E são poucos.

Quando o chefe Norlin bate na porta de Winge pedindo ajuda para descobrir quem matou o homem encontrado no lago Ucharia, sabe da condição de saúde de Winge, que pode ser a última vez que o amigo irá ajudá-lo na solução de um crime. Só que também é a última tarefa de Norlin, uma vez que será substituído por Magnus Ullholm, uma pessoa de confiança do Barão Gustaf Adolf, e também porque o barão surte ressentimentos por Norlin ter sido mais fiel ao falecido rei Gustav. Assim é urgente que a tarefa seja completada de forma rápida.

Cardell conhece Winge quando repassa as informações de como encontrou o corpo no lago e solta algumas opiniões, que são suficientes para fazer surgir uma certa simpatia em Winge. Somado ao fato de Cardell conhecer muitas pessoas da parte obscura da cidade, Winge decide convidá-lo para ajudar na investigação. Então, um ex-soldado quebrado, aleijado, esquecido pela sociedade e sem qualquer laços familiares, junto com um advogado condenado a morrer por uma doença implacável, que abandonou todos os que amava, e que tem nessa última investigação a chance de tirar do mundo mais um ser vil, unem forças para descobrir quem era o homem morto e quem o matou. E é delicioso ver como o autor consegue apresentar esses dois personagens de formas tão intimistas, tão profundas, criando um sentimento de empatia e de pesar por nenhum dos dois possuir um futuro promissor, independentemente do sucesso ou fracasso da missão.

Em apenas 100 páginas, Winge e Cardell conseguem descobrir como o corpo foi levado para o rio, quem fez o transporte e onde o homem morava quando vivo. Mas ainda lhes falta descobrir o motivo e o assassino. Quem teria tanto ódio de uma pessoa, a ponto de torturá-la por semanas, arrancar seus membros aos poucos, tirar sua visão, sua fala, até que morresse? E quem é o homem que passou por esse sofrimento? Nesse ponto, Winge e Cardell ficam num beco sem saída, sem respostas, e a primeira parte da narrativa se encerra e passamos a acompanhar Kristofer Blix, um jovem estudante de medicina que chega a Estocolmo em busca de aventuras, mulheres, festas e bebidas. Mas como não tem dinheiro para tudo isso, junto com um amigo, inicia um plano de pedir empréstimos a benfeitores, que paga com outros empréstimos. Isso até conhecer um homem que tem planos diferentes para suas habilidades médicas.

Blix tem apenas 17 anos, é um jovem sem maturidade e ingênuo, não conhece a maldade do ambiente que frequenta e nem as consequências de seus atos. No meio dessa segunda parte, descobrimos qual a ligação de Blix com o homem que foi assassinado e quem o matou. Considero que é a parte mais tensa e forte da história, a mais desesperadora, porque Blix entra numa espiral de destruição que não pronuncia qualquer escapatória.

E então começa a terceira parte, onde desta vez, acompanhamos uma jovem chamada Anna Stina, vendida para um prostíbulo e com um destino quase certo para a morte. Da mesma forma que na parte anterior, na sua metade, descobrimos qual a ligação dela com tudo o que aconteceu até então, principalmente com Blix, e é uma surpresa como tudo se encaixa, como finaliza o plano que o autor construiu de forma minuciosa, cautelosa, como as peças de um xadrez sendo levadas para pontos estratégicos em preparação para o fim do jogo.

E isso acontece na parte final, quando tudo o que aconteceu até então, converge para um clímax surpreendente, violento, sem qualquer piedade, porque as pessoas que a justiça não pode alcançar, ou por incapacidade, ou por objetivos escusos, não escapam de quem não tem medo de agir com as próprias mãos. E as decisões que Winge toma para que seja feita essa justiça, são totalmente compreensíveis diante de seu estado limitado de vida.

Cecil Winge, Mickel Cardell, Kristofer Blix, Anna Stina, bem como todos os personagens coadjuvantes, inclusive os que pouco aparecem, mas que possuem uma função importante no desenrolar da história, são totalmente distintos, perfeitamente bem construídos, totalmente críveis, cheios de dimensões, donos de ações que condizem com quem são e com o que fazem. A habilidade do autor de fazer isso é impressionante, coisa que apenas grandes autores, autores experientes, conseguem. Mas 1793 é seu primeiro livro, é sua estréia, e esse detalhe torna tudo ainda mais incrível.

Niklas Natt och Dag tem total domínio dos personagens, da trama e da forma da narrativa, as descrições dos lugares são pequenas, poucas palavras, mas suficientes para possibilitar ao leitor compreender todo o cenário e toda a ação. As pequenas informações históricas que coloca nos diálogos ou nas explicações, acontecimentos reais da época, provocam um sentimento de realidade impactante. E tudo o que acontece, as pistas que são encontradas no decorrer da investigação, que em um primeiro momento parecem sem sentido, e às vezes sem importância, são todas explicadas e se encaixam perfeitamente. Até mesmo pequenos detalhes, como um hábito de um personagem em fazer algo, ou mesmo um diálogo ouvido atrás de uma porta, ou até uma atitude que parece loucura, tudo, tudo tem algum motivo, e é demonstrado no devido tempo.

1793 é um thriller muito forte, com trechos que podem causar repulsa, principalmente nos que descrevem o que aconteceu com a vítima antes de ser assassinada. Essas partes podem parecer excessivas, mas acreditem, elas têm um motivo. Por exemplo, quando Winge e Cardell descobrem onde o homem vivia antes de morrer, há a insinuação de que ele era louco, uma vez que ele comia suas próprias fezes. Parece algo extremo, nojento, sem um real propósito para a trama que não chocar. Foi isso que pensei. Mas no clímax, isso é explicado, e é brilhante. Existe um motivo para esse comportamento e é uma das grandes reviravoltas da trama. Nada na história é gratuíto. E essa inteligência em construir algo que se fecha perfeitamente, com personagens que se dividem em ser cativantes e outros em despertar um profundo ódio e desprezo, tornam o livro uma das melhores obras que eu já li. Ao terminar, e da forma como termina, me passou a sensação de ter lido uma obra que poucas vezes aparece nas livrarias, um prazer em ter nas mãos algo tão difícil de se criar e de encontrar. Já tem um lugar especial na minha estante. Espero que vocês leiam e também se admirem como eu.


AUTOR: Niklas NATT OCH DAG
TRADUÇÃO: Fernanda ABREU
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2020
PÁGINAS: 432


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