A Lei Maria da Penha (nº 11340/2006) é a principal legislação para defesa da mulher no Brasil. Reconhecida pela ONU como uma das três melhores do mundo, ela não é o único recurso que uma mulher encontra para se defender da violência. Existe a Lei do Feminicídio, sancionada pela presidenta Dilma Roussef em 2015, que colocou a morte de mulheres como crime hediondo. As dez agressões mais praticadas contra mulheres, são:

UM: Humilhar, xingar e diminuir a autoestima;
DOIS: Tirar a liberdade de decisão ou crença;
TRÊS: Fazer a mulher achar que está ficando louca, considerado um abuso mental. Distorcendo os fatos e omitindo situações para deixar a vítima em dúvida sobre sua memória e sanidade;
QUATRO: Controlar e oprimir a mulher, não deixá-la sair, isolar sua família e amigos ou procurar mensagens no celular;
CINCO: Expor a vida íntima, como vazar fotos nas redes sociais;
SEIS: Atirar objetos, sacudir e apertar os braços, uma forma de violência física;
SETE: Forçar atos sexuais desconfortáveis ou que causam repulsa;
OITO: Impedir a mulher de prevenir a gravidez ou obrigá-la a abortar;
NOVE: Controlar o dinheiro ou reter documentos contra a vontade da mulher, considerado uma violência patrimonial;
DEZ: Quebrar objetos da mulher.

Mas as agressões vão além dessa lista. Como resumo, pode-se dizer que, hoje em dia, atos como estupro, assédio, coerção, infanticídio, aborto seletivo, violência obstétrica, crime de honra, dote, mutilação genital, violência no trabalho, escravidão, violência sexual, esterilização forçada, apedrejamento e flagelação, ainda estão presentes na sociedade e acontecem aos milhares por todo o mundo.

Em 2015, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou 1 estupro a cada 1 minutos. Estima-se que esse número corresponde a apenas 10% dos casos, uma vez que a maioria não denuncia. Segundo o IPEA, em um estudo feito em 2011, cerca de 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes, cometidos por homens próximos, como pais, irmãos, primos e amigos. Há, em média, 10 estupros coletivos notificados diariamente no SUS, segundo dados do Ministério da Saúde. Somente 15% dos acusados por estupro foram presos. No estado do Rio de Janeiro, há um caso de estupro em escola a cada cinco dias e 62% das vítimas têm menos de 12 anos, segundo o Instituto de Segurança Pública. A cada 7 segundos, uma mulher é vítima de violência física, segundo o Instituto Maria da Penha. Em 2013, 13 mulheres morreram por dia vítimas de feminicídio, isto é, assassinato em função de seu gênero. Dessas, 30% foram mortas pelo parceiro. Em 2015, a Central de Atendimento à Mulher, Ligue 180, realizou 749.024 atendimentos, ou 1 atendimento a cada 40 segundos. Sim, são números assustadores.

A obra de Heather Demetrios, ROMANCE TÓXICO, trata de SETE das dez formas de agressão que coloquei no início da resenha. Não vou citar quais para não estragar a experiência da leitura. E quando digo trata, é porque a autora não romantiza as situações e em nenhum momento tenta justificar os atos do homem.

Grace é uma jovem de 17 anos que está para entrar no último ano do colégio. Ela também trabalha, e e em casa, ela lida com uma relação conflituosa com a mãe e com o padrasto. Além disso, ela precisa economizar para conseguir entrar em uma universidade de Nova York. Ela é apaixonada por Gavin, um ex-colega mais velho que acabou de terminar os estudos e que canta em uma banda de rock. Quando a namorada dele termina o relacionamento, Gavin não lida com a rejeição de forma normal e tenta o suicídio. Querendo ajudar, Grace manda uma carta para incentivar Gavin a superar a fase. Aos poucos, eles se aproximam e começam a namorar. Também aos poucos, Grace descobre que Gavin não é o príncipe que ela imaginava.

A narrativa é em primeira pessoa, feita por Grace, mas não para o leitor e sim para Gavin, como se ela estivesse explicando para ele os motivos que a levaram a terminar o relacionamento. Existe uma outra obra que usa essa mesma técnica, POR ISSO A GENTE ACABOU, de Daniel Handler, o autor de DESVENTURAS EM SÉRIE. Nela, a personagem reúne presentes que ganhou do namorado e os utiliza como base para contar a história. Na obra de Heather Demetrios, não são presentes, mas obsessões de alguém que beira a psicopatia. De certa forma, essa escolha de narrativa, deixa um certo alento no coração do leitor, uma vez que sabemos previamente que ela conseguiu se libertar.

ROMANCE TÓXICO não aborda apenas um relacionamento abusivo, mas três. A mãe de Grace tem TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), e ela exige que a casa sempre esteja extremamente limpa, livre de qualquer tipo de sujeira ou pó. Ela obriga Grace a realizar todas as tarefas domésticas e a cuidar do irmão mais novo, mesmo ela tendo que estudar e trabalhar ao mesmo tempo. Qualquer deslize de Grace, por menor que seja, mesmo que seja apenas um suspiro de cansaço, é motivo para colocá-la de castigo. Esse é o primeiro relacionamento abusivo.

A mãe de Grace é apoiada pelo padrasto, a quem Grace apelidou de Gigante. Ele é um homem dominador, exigente, truculento, violento, que não aceita ser contestado pela esposa ou pela enteada. Em partes da história, há agressões físicas dele na esposa, mas Grace não as presencia, então não existe uma descrição direta, apenas suposições. Considero isso um acerto da escritora, para não pesar a história mais do que ela já é pesada e para não desviar a atenção dos personagens principais. Entretanto, mesmo assim, existe um peso e uma mensagem bem clara e direta sobre o que muitos jovens enfrentam em casa por causa do relacionamento destruído dos pais. Esse é o segundo relacionamento abusivo.

O terceiro é o foco da história, o romance de Grace com Gavin. Heather Demetrios foi muito competente na forma como apresenta, passo a passo, sem pressa, em detalhes, como o abuso se inicia e até onde ele pode ir. Desde aquele pedido para compartilhar a senha do celular, aquela reclamação quando se abraça um amigo, o pedido para ler o diário pessoal, as constantes mensagens perguntando onde está, as reclamações quando se quer sair com as amigas, a desconfiança quando não se atende um telefonema, passando pelas chantagens emocionais para obrigar a pessoa a fazer algo que ela não quer, o vitimismo para culpar a pessoa mesmo sem ela ter culpa, as ameaças de afastamento, os puxões de braço, os empurrões e, finalmente, as agressões e algo mais que não vou citar aqui.

O que diferencia e qualifica ROMANCE TÓXICO como um dos melhores livros do gênero, é que a autora, em momento algum, justifica as atitudes de Gavin. Tudo o que ele faz, como a tentativa de suicídio, como o fato de frequentar uma psicóloga, como sua necessidade de remédios, nada disso é apresentado como desculpa comportamental, mas como ele utiliza tudo isso como forma de tentar prender Grace no relacionamento e convencê-la, a cada vez que a agride mentalmente, emocionalmente ou fisicamente, de que ele não tem culpa, que ela precisa perdoá-lo mais uma vez, porque ele irá mudar.

Grace não representa uma garota frágil e boba que se deixa enganar e abusar pelos pais e pelo namorado. Pelo contrário. Ela é uma garota que estuda, que tem planos futuros para sua profissão, que trabalha para juntar dinheiro, que sabe que a mãe tem um relacionamento abusivo, que sabe que ela está presa dentro de um outro relacionamento também abusivo, que ela precisa sair. E a autora demonstra que mesmo quando a pessoa tem consciência de tudo isso, que, mesmo assim, muitos vezes é difícil conseguir sair.

A competente construção dos personagens não se reduz apenas aos principais. As duas amigas de Grace, Nat e Lys, desconfiam que Gavin não é o que aparenta. E quanto ele começa a se mostrar, elas são as primeiras a fazer Grace enxergar o quanto seu relacionamento é nocivo. Também tem a irmã mais velha de Grace, que não mora mais com ela e os pais, porque está na faculdade. Quando ela conhece Gavin, e ele age de forma agressiva, ela identifica na hora que ele é um problema. E Grace não duvida de nenhuma delas, ela também começa a perceber que é usada por ele. Mas, como disse, quando se está dentro de um relacionamento desses, sair não depende apenas da vontade.

Grace e sua mãe têm motivos concretos que as prendem aos relacionamentos. É explicado no livro quais são. Motivos bastante reais, comuns a milhares de jovens e mulheres que passam pelo mesmo. E a autora demonstra como mesmo sendo difícil, muito difícil, há uma saída. Talvez não para a mãe de Grace, como quem ler o livro vai descobrir porquê, mas sim para Grace. E ela consegue. E ela joga na cara de Gavin o monstro que ele é, e como ela é muito mais forte do que ele. E como todo homem abusador, quando ele é confrontado, ele some.

ROMANCE TÓXICO é um livro competente, responsável, extremamente bem escrito, com personagens complexos e coerentes, com uma mensagem de que, sim, existe saída para se escapar de relacionamentos doentes. Mais do que isso, ele respeita a dor dessas mulheres, ao contrário de muitas outras obras que não se preocupam em ajudar, mas querem apenas criar situações degradantes para causar e vender.

Ao fim do livro, existe um pequeno texto da autora explicando algumas coisas pessoais e com vários contatos para quem precisar conseguir ajuda. Uma leitura indispensável!


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Heather DEMETRIOS nasceu em Los Angeles e é mestre em escrita criativa para crianças e jovens pelo Vermont College of Fine Arts. Quando não está viajando pelo mundo ou por lugares imaginários, vive em Nova York com o marido
TRADUÇÃO: Flávia Souto MAIOR
EDITORA: Seguinte
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 416


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