Alice é mãe de três filhos, está sempre presente na vida das crianças e atua como líder em várias atividades extracurriculares na escola. É bonita e tem uma excelente situação financeira. Sua rotina não tinha erros, até o dia em que cai na academia e acorda não se lembrando dos últimos dez anos de sua vida. Liane Moriarty, a mesma autora que nos impactou com o excelente PEQUENAS GRANDES MENTIRAS, leva, mais uma vez, o leitor para o mundo das donas de casa e, desta vez, indo mais fundo nesse assunto que de fútil não tem nada.

O livro se inicia com o acidente da protagonista, que não reconhece o lugar onde está, ninguém à sua volta e pensa que está no ano de 1999. A narrativa já começa interessante, porque vamos descobrindo as coisas junto com Alice. O problema é que ouvimos as coisas de outras pessoas e, nessa altura do campeonato, fica difícil acreditar em tudo, até porque toda história tem dois lados. E conversando com o pessoal e a família de Alice, percebemos que ela não parecia uma boa pessoa. Aparentemente era muito rígida e mandona com todos, não tinha um relacionamento bom com sua irmã e estava se separando do seu marido. E só ouvimos o que as pessoas tem a dizer sem entender todos os reais motivos, e para o leitor dá a entender que a protagonista era cheia de problemas e desavenças com os outros.

Alice pensa que é jovem, que está nos anos 90, e automaticamente trata a todos como se os conhecesse nessa época. A ficha vai caindo aos poucos e quando entende que está em 2008, fica chocada com a pessoa em que ela se transformou num intervalo de uma década. A Alice jovem era animada, feliz, ingênua e despreocupada, o que a fez se transformar nessa lunática controladora? A própria personagem principal se desaprova e diz que jamais seria essa pessoa que os outros dizem que ela é. O próprio leitor também tem a sensação de que a antiga Alice era uma péssima pessoa, até chegarmos no ápice da história com Alice recuperando suas memorias.

O livro começa com o acidente e caminha com Alice meio que tentando entender quem ela é. A moça tem três filhos pequenos e, depois da queda, ela não se lembra deles, já pensou? Esquecer da existência dos seus próprios filhos, sendo que eles são crianças e moram com você. Ela não se lembra de sua rotina, que consistia em vários encontros sociais com outras mães da escola, vício em cafeína e uma pesada série de exercícios físicos. E o principal, ela não se lembra o que motivou seu divórcio e o ódio que todos dizem que sente por seu marido. Na cabeça da Alice, sem memórias, ela jamais iria largar seu marido e tem o plano de reconquistá-lo, mesmo sem entender o que motivou as brigas que arrasaram esse casamento.

A surpresa fica com o ato final quando conseguimos entender todo o real panorama da história. As revelações não são nada fácies de se prever e pegam o leitor de jeito, fazendo-o questionar sobre tudo, principalmente sobre como acusamos as pessoas com rapidez, mesmo sem ter visto os dois lados da história. Além de ser um dos melhores momentos do livro, a revelação acontece num dos capítulos mais divertidos, que acompanha o grupo de mães da escola na luta para quebrar um recorde. Num evento beneficente aberto a todos, as moças estão fazendo a maior torta merengue de limão do mundo, sonhando com um lugar no famoso livro Guinness Book. É apenas uma das coisas mais aleatórias e sensacionais que você vai ler no livro, descrito de uma forma que faz você mesmo estar nesse evento ajudando a criar essa torta colossal.

A irmã de Alice tem capítulos próprios, e a moça vive um drama em paralelo, o pesadelo da infertilidade e o sonho de ser mãe. Seus capítulos consistem em cartas para o seu psicólogo e de longe são os momentos mais pesados do livro, e é lá que podemos entender um pouco sobre quem é a verdadeira Alice e o porquê de não se dar bem com seus familiares. Outra parente de Alice também tem capítulos próprios, que são posts em seu blog, onde praticamente ela conta da vida de todos os seus parentes para qualquer um na Internet. São engraçados, bizarros e, no final, podem ser um pouco desnecessários para a trama.

Na real, o livro lembra um pouco a trama do filme OS FANTASMAS DE SCROOGE, que abordava o conto sobre uma pessoa que era meio ruim e recebia a visita de três espíritos que o levavam para ver o seu passado com outros olhos, para no fim fazer a pessoa entender que ela precisa mudar suas atitudes consigo mesmo e com os outros. É fato que a trama se inspira nisso, mas, felizmente, ela vem carregada com vários questionamentos e lições importantes que são para a nossa protagonista e que também servem para o leitor. Não julgue a si mesmo com tanta rapidez, as pessoas não são tão fácies de se rotular, as circunstâncias nos mudam, a vida nos amadurece e é quase impossível sermos a mesma pessoa por toda a vida.

Liane Moriarty é mestre na arte do cotidiano e ela leva isso para os seus livros de maneira interessante e viciante. A trama tem mais de quatrocentas páginas e se passa em menos de uma semana e pode parecer que nada acontece, já que a protagonista só vai caminhando por sua estranha vida tentando entender quem ela é, mas nunca fica desinteressante. O texto carrega poucas, porém suficientes subtramas, e todos os seus personagens são deliciosos de se ler e descobrir. Passa longe de ser mais um drama da mulher branca, com vida fútil e difícil, cheia de privilégios. É sobre memórias, sobre não se perder de si mesmo e sobre saber ser a melhor versão de si. Uma das maiores surpresas que li neste ano e te garanto que não será uma perda de tempo para você!


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Liane MORIARTY é uma escritora australiana. Conhecida mundialmente pelo livro Pequenas Grandes Mentiras, que deu origem à série Big Little Lies da HBO
TRADUÇÃO: Julia ROMEU
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 415


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