Incentivado por um fanático religioso, a população dos EUA elegem um presidente de extrema direita conservadora, que muda de forma totalitária a sociedade do país. Como sua principal medida, ele obriga as mulheres a portarem uma pulseira que as obriga a proferir apenas 100 palavras por dia. Caso excedam esse número, recebem choques no pulso a cada 10 palavras a mais.

A Dra. Jean McClean é uma neurolinguista especializada e com estudos avançados em Afasia de Wernicke, que é uma alteração na linguagem oral e escrita, tornando a comunicação sem muita precisão, que é ocasionada por uma lesão neurológica. Pode ser causado por um transtorno primário (inflamação no conduto auditivo interno), lesão neurológica em decorrências de traumatismo crânio encefálico e/ou problema vasculares como acidente vascular encefálico. Quando o irmão do presidente sofre um acidente que lhe impede a expressão de palavras como símbolos de pensamentos, ou seja, a Afasia de Wernicke, o presidente e o reverendo pedem auxílio à Dra. McClean. Então, ela inicia um plano para conseguir depor esse governo e voltar com a liberdade para o país.

VOX é uma versão simplista, mais leve, mais fantasiosa, direcionada para um público mais jovem, de O CONTO DA AIA, de Margaret Atwood. Existem vários elementos na obra de Christina Dalcher que remetem ao de Atwood, principalmente no primeiro um terço do livro. O discurso de intolerância, a vigilância do governo, a violência no tratamento das mulheres, a desconfiança dentro do lar de cada família, a passividade dos homens, a paranóia de ser denunciado por qualquer deslize, os sequestros à luz do dia sem qualquer explicação, as prisões distantes para mulheres ou pessoas contrárias ao governo, entre outros detalhes. Tudo causa o mesmo tipo de revolta que você sente ao ler a obra de Atwood. E mesmo sendo uma cópia das ideias, tudo é muito bom e surte um efeito de raiva no leitor que o faz ter vontade de fazer algo para ajudar.

Jean é a personagem principal e é a narradora, intercalando os capítulos curtos entre o presente e o passado, exatamente como acontece em O CONTO DA AIA. A grande diferença dessa primeira parte, é que o tom da história é amenizado. Jean mora com seu marido, Patrick, um assessor direto do presidente, e seus quatro filhos, uma menina e três meninos. Apesar do regime ditatorial, ela pode andar pelas ruas, pode fazer compras, pode conviver com a família, pode se comunicar com os pais que moram na Europa. É um regime menos fechado, mesmo que intolerante. Quem leu O CONTO DA AIA, sabe que todo o livro é muito pesado, com trechos de estupro, de abandono familiar, com limitações até para se andar na rua, e onde a família das aias é dispersada ou presa. Mas como disse, mesmo assim, a narrativa é eficiente e importante na mensagem que entrega. Afinal, nos últimos anos, vimos dois governos de extrema direita emergirem: um nos EUA, e outro aqui mesmo no Brasil. E o discurso de ambos, bem como nos dois livros referidos acima, é muito semelhante, praticamente igual. A diferença é que ainda não aconteceu a supressão da liberdade, dos direitos civis. Pelo menos por enquanto.

Nesse primeiro um terço de VOX, existe um embate que consegue fazer o leitor mais calmo ter vontade de socar um determinado personagem. No caso, Steven, o filho adolescente de Jean. Ele é o personagem que representa os jovens que sofrem lavagem cerebral pelos discursos de ódio e fogem da racionalidade. Ele acha que as mulheres, realmente, devem ser controladas, que o país está melhor dessa forma, que a paz é conseguida assim, com uma mão de ferro, independentemente que isso signifique uma prisão verbal. Os diálogos entre Steve e Jean são contundentes, importantes, e demonstram como é fácil corromper um jovem mais imaturo, que não tem vivência, que viveu sempre sob as asas de pais ausentes por causa da falta de tempo.

Ainda nessa primeira parte, o relacionamento de Jean com Patrick também é muito importante. Ele demonstra carinho com a esposa, mas é óbvio o afastamento dos dois devido à situação do país e das mulheres. O comportamento de Patrick, apesar dele não poder fazer nada para mudar a situação, é passivo de certa forma, e isso, somado ao fato dele frequentar a Casa Branca, faz crescer em Jean uma repulsa e um ódio que, embora não seja culpa dele, é direcionado para ele. Mesmo sem querer, ela deseja que ele seja mais revoltado com a situação, que não se habitue a ela, apenas por ser homem e por não sofrer represálias ou ter sua voz silenciada. Ela quer que ele grite as palavras que ela não pode dizer. Apesar dela saber que isso só o faria perder o emprego e ser preso.

Entretanto, toda essa qualidade desaparece no segundo terço da obra, e despenca completamente na sua conclusão. Quando Jean é “convidada” a fazer parte da equipe médica e científica que irá procurar uma cura para a Afasia de Wernicke, e assim salvar o irmão do presidente, o tom do livro muda drasticamente. A discussão sobre a supressão de liberdade é praticamente abandonada, e a narrativa se concentra entre o relacionamento extraconjugal de Jean com um outro cientista italiano, enquanto ela investiga atos suspeitos do governo, que indicam que existem outras equipes em busca de algo mais eficiente do que as pulseiras.

O romance de Jean com Lorenzo, o tal cientista italiano, é deslocado e desvia totalmente a atenção do enredo principal. Em certos momentos, a sensação que me passou, é de estar lendo um Young Adult leve ao invés de uma distopia calcada na luta contra o machismo, a opressão e o totalitarismo religioso. Pior que isso: ele acaba transformando Jean de uma mulher revoltada pela situação que ela e a filha mais nova vivem, impedidas de falar, de serem livres, para uma mulher rancorosa, que coloca em risco sua família, ela mesma, os amigos cientistas, e tudo que ela tem, para ter uma relação com um homem bonito. É a tal mania de colocar personagens femininas dependendo da presença de alguém do sexo masculino para se sentirem mais mulheres. Beira o ridículo.

Entretanto, nessa segunda parte tem uma pequena parte que precisa ser mencionada, porque é a única parte que se salva: Steven, o filho de Jean, faz algo que prejudica um outro personagem, e isso faz com que ele perceba como o regime é intolerante e violento, mudando sua linha de pensamento e conseguindo perceber o absurdo da realidade que a mãe, a irmã mais nova e todas as mulheres são obrigadas a viver. É uma parte tocante e que consegue salvar o personagem.

Já na sua conclusão, a autora opta por algo que, mesmo com supressão de descrença, fica difícil, muito difícil de acreditar. A solução para tudo é absurda, totalmente impossível de acontecer. Não porque o que acontece não pudesse ser realizado, mas porque o resultado do que ela faz, jamais surtiria o efeito que o livro descreve. Uma regime totalitário não é mantido por uma, duas, ou uma dúzia de pessoas, mas por líderes e uma massa que compartilham as mesmas ideias, as mesmas convicções. Todos os ditadores mundiais possuíam seguidores tão loucos quanto eles.

Mas nem foi isso que me incomodou mais. E a seguir eu preciso comentar sobre isso, o que é um SPOILER. Então só leia o restante deste parágrafo se já tiver lido o livro. O que me incomodou, é que no final, a autora mostra que Patrick, na verdade, não era um homem passivo, ele fazia, secretamente, parte de uma resistência que cujos membros lutavam e morriam para conseguirem depor o atual governo. Inclusive, ele perdoa Jean pela traição com Lorenzo, ele demonstra sua virtude e seu amor pela esposa. E se sacrifica para que ela, e todas as mulheres, sejam livres. E Jean aceita isso e fica feliz ao lado de Lorenzo. Ou seja, a autora não só coloca a salvação nas mãos de um homem, que se mostra moralmente melhor que a mulher, como transforma a sua personagem feminina em alguém que trai sem remorso, e que não é a responsável direta por sua liberdade.

VOX possui uma mensagem importante sobre liberdade e supressão da liberdade, sobre totalitarismo, sobre machismo, sobre empoderamento feminino, sobre extremismo religioso, mas apenas em sua parte inicial. Depois, infelizmente, a história se perde conceitualmente e corrompe o que deveria transmitir. É uma pena. Mesmo assim, recomendo a leitura, porque essa parte inicial é muito boa e muito importante. Ainda mais no atual governo brasileiro.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Christina DALCHER é linguista e professora universitária com doutorado pela Universidade de Georgetown. Seus contos figuraram em mais de 100 publicações ao redor do mundo. Ganhadora de diversos prêmios, foi finalista do Bath Flash Award e indicada ao Pushcart Prize. Ela vive em Norfolk, Virgínia, com o marido
TRADUÇÃO: Alves CALADO
EDITORA: Arqueiro
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 320


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