Peter Pike é o patriarca de uma família destroçada. Patrícia, sua esposa, não consegue mais ver nada de bom no casamento. Críticas após críticas, a relação do casal é mantida pela insistência de um suportar o outro. Os quatro filhos não se saem melhor. Richie é um bêbado e viciado, endividado, que não tem qualquer futuro. Tara é uma corretora de imóveis que planeja a construção de um clube e campo de golf, no terreno que hoje é ocupado por uma fábrica que dá emprego a metade da cidade, inclusive a seu esposo e a seu irmão Richie. Patrick vive em outra cidade e é um escritor de uma obra de sucesso apenas. Agora, ele tenta emplacar um segundo best seller, mas não consegue sair de uma fase de total incapacidade criativa. E Tommy é o irmão que consegue manter os outros três de pé. A coisa toda piora quando Peter sofre um derrame, é internado em coma e fica à beira da morte. Patrick precisa retornar para casa e tentar compreender sua família, ao mesmo tempo em que tenta juntar seus pedaços.

O ponto em comum entre todos eles, que os mantêm firmes, mesmo que por pouco, é a relação com Tommy. Tommy é o irmão que está sempre ao lado de Richie, mesmo quando ele faz as piores cagadas. Tommy é o irmão que apoia Tara num empreendimento que pode custar seu casamento. Tommy é o irmão que cobra de Patrick a devolução de um caderno, motivo pelo qual não consegue mais escrever. Tommy é o filho de uma mãe que mantém um caso extraconjugal. Tommy também é o filho que conversou pela última vez com Peter antes do derrame. Só tem um detalhe. Tommy morreu anos atrás e essa tragédia foi a responsável pela quase destruição da família.

Esse é o principal destaque de ROYAL CITY, a forma como essa família lida com a morte. Patrick conversa com um Tommy adolescente; Tara conversa com um Tommy criança; Peter com um Tommy pré-adolescente; Patrícia com um Tommy que seguiu o celibato e virou padre; e Richie com um Tommy que virou adulto. Cada um deles parece ter um assunto pendente com o filho/irmão. Algo que ficou preso na idade em que cada um deles enxerga Tommy. Enquanto enfrentam o que a vida lhes reserva, e enfrentam um ao outro por causa das mágoas que acumularam, eles se refugiam na visão do Tommy que os deixa confortável.

Além de cada integrante da família Pike ter sua versão de Tommy, ou melhor, ter uma versão de Tommy em uma idade diferente, o que eles pensam ouvir não é o que eles querem ouvir, mas o que eles precisam ouvir. Tommy não está lá para passar pano, mas para mostrar a seus familiares os erros que estão cometendo e um possível caminho para se acertarem, se perdoarem, para retomarem uma felicidade que perderam.

A arte e cores de Jeff Lemire, com traços grossos, feições pesadas, rostos quase sempre carrancudos e preocupados, ajudam a montar um clima pesado de tensão, de tristeza, caminhando para a depressão. Os olhares dos personagens transmitem um constante cansaço, desânimo, com raras exceções, que acontecem quando estão presentes com Tommy. Soma-se a isso o fato de que toda a família fracassou em algum sentido, ou no casamento, ou na profissão, ou como pais, o clima da HQ precisa ser absorvido com calma.

ROYAL CITY tem um total de 14 edições, publicadas entre 2017 e 2018, nos Estados Unidos. Esta edição da Intrínseca, reúne as primeiras 5 edições. Por conta disso, ficamos com mais perguntas do que respostas, o que é natural. Não sabemos o que aconteceu com Tommy, como ele morreu, apenas quando ele morreu, aos 14 anos de idade. Também sabemos que existe uma grande pendência de Patrick em relação ao seu primeiro livro e a algo com Tommy, mas não chegamos a descobrir o quê. Tudo ainda é muito misterioso, o que deixa uma sede enorme para os próximos volumes.

Confesso que me surpreendi com a HQ. Eu comecei a ler sem saber praticamente nada da história, nem sequer li a sinopse. Sabia apenas que se tratava de um drama familiar em uma cidade que tinha algo de estranho. O que encontrei vai mais fundo do que um drama familiar. Vai na superação da dor de perda de quem amamos e na luta que é necessário travar para conseguir consertar os erros com essa pessoa que não está mais em vida. ROYAL CITY vale muito a leitura e se tornou uma das HQs mais fortes que li nos últimos tempos.


AUTOR: Jeff LEMIRE
ILUSTRADOR: Jeff LEMIRE
TRADUÇÃO: Fernando SCHEIBE
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2021
PÁGINAS: 160


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