Finalmente pude ler essa fantasia tão aclamada. FILHOS DE SANGUE E OSSO é realmente “tudo isso”, o universo criado é fantástico e traz à tona inúmeros questionamentos sobre a vida real. O iorubá é um elemento obrigatório, somos inseridos tão profundamente nessa cultura que fica difícil não querer conhecer tudo a respeito. Mas eu tive alguns problemas no decorrer da leitura, problemas que vão desde personagens rasos, até elementos sem justificativa. É óbvio que nada disso estragou a leitura, estava tão encantada com o universo que me neguei a deixar isso estragar a experiência… Mas poderia ter sido melhor.

Aqui vamos conhecer Zélie Adebola, uma jovem que vivenciou os horrores da Ofensiva, quando ainda era criança. Ela se lembra de quando o solo de Orïsha ainda vibrava com a magia. Quando queimadores geravam chamas, quando mareadores formavam ondas e quando sua mãe, uma ceifadora, invocava almas. Mas após o ato cruel de um rei tirano, os maji viraram alvo e foram mortos, deixando Zélie e sua família sem a mãe e a população totalmente zerada de esperança. Entretanto, em um dia, que deveria ter sido normal para Zél, uma princesa fugitiva cruza o seu caminho e joga uma bomba em seu colo: ela agora tem a chance de trazer a magia de volta. Só que, para isso, deve fugir, deixar todos para trás, lutar pela própria sobrevivência e estar preparada para o derramamento de sangue. Ela só tem uma chance. Caso contrário, tudo estará perdido para sempre

Devo começar dizendo que estou encantada com a cultura iorubá. Os elementos citados no enredo são vários, indo desde vestimentas e pratos típicos, até os deuses e suas personificações. Deu pra perceber que a autora realmente se comprometeu com essa parte, já que nos deixa com vontade de conhecer cada vez mais sobre tudo que a envolve.

O enredo é simples e conhecido: o mal se sobressai, oprime o bem e mantém um regime monárquico até que uma pessoa “escolhida” resolve começar uma guerra. Umas magias aqui, uns porradeiros ali, nada extraordinário. O livro teria sido mais um na multidão se não fosse pelo iorubá, e é justamente esse o ponto positivo. Os personagens não são grande coisa, o desenvolvimento não tem grandes novidades e os plot twists são quase aguardados. Eu diria que é um clichêzão da fantasia (e isso não quer dizer que seja ruim).

A protagonista, Zélie, consegue ser incrivelmente inconsequente pra uma pessoa que vivenciou tantas desgraças em sua vida. Mas tudo bem, ela é a chave de tudo, precisa ter um temperamento agressivo. Seu irmão, Tzain, é o típico primogênito que sofreu o mesmo que todos, mas que toma pra si a tarefa de cuidar de todo mundo e por isso se acha o dono da razão. Minha nossa, perdi as contas de quantas vezes quis entrar no livro pra socar a cara desse insuportável! Amari, a princesa, é o tipo de personagem que vive mergulhada nas próprias lamentações, tem medo de tudo e só reage quando a morte tá cheirando o seu cangote. Só passei a gostar dela lá para o fim do livro, antes disso eu fazia de conta que não existia. Inan, príncipe e irmão de Amari, é um badboy tão forçado que vou ficar surpresa se alguém disser que gostou dele.

Cada personagem tem seu papel na trama e os poderes mágicos designados são incríveis… só que foram mal aproveitados. A propaganda acerca da magia é tão grandiosa, enche os olhos do leitor e acaba sendo um filme de Sessão da Tarde com efeitos dos anos 90. Apenas em um momento ou outro realmente senti o potencial da autora em descrever batalhas e cenas desconcertantes, afinal isso é o esperado no universo em que somos inseridos.

No meio da história, há uma tentativa de romance, estilo enemies-to-lovers (quando inimigos se apaixonam), mas foi tão desnecessário que poderia facilmente ser retirado do roteiro. O romance secundário não desenvolvido é muito mais tolerável, só que ficou esquecido no churrasco e provavelmente vai acontecer de forma abrupta no próximo livro.

Encontrei duas conveniências de roteiro que me irritaram profundamente. Chegou ao nível do sem sentido, passou a mensagem de que a autora não sabia como encaminhar o enredo para o que ela queria e jogou um diálogo burro para justificar as consequências. O lado positivo é que essas consequências foram bem desenvolvidas e valeram a pena o nervoso passado.

Mas embora todo o veneno destilado aqui, digo com tranquilidade que foi uma das melhores leituras do ano. Sim, há problemas que podem ser encarados como “contratempos do primeiro livro”, nada além disso. Ainda temos dois volumes para finalizar essa trilogia, há muito chão a ser percorrido e essas questões são fáceis de serem resolvidas.

A história flui muito bem, a escrita da autora é excelente e causa momentos de tensão genuínos, as descrições são ricas em detalhes e o encanto acerca dos deuses orishanos é quase palpável. A batalha final é épica, chorei feito uma criança que perde sua bola de sorvete num dia quente. Precisei reler alguns trechos para chorar mais, fiquei tão impactada que passar pelo sofrimento uma única vez não foi suficiente.

A notícia da adaptação cinematográfica desse universo pela Lucasfilm, produtora de Star Wars e Indiana Jones, foi um dos motivos para que eu quisesse realizar a leitura o quanto antes. Grandes nomes estão envolvidos nessa produção, então só posso acreditar que será épico. Mal posso esperar para ver uma Zélie melhorada tocando o terror em Orïsha.


AUTORA: Tomi ADEYEMI
TRADUÇÃO: Petê RESSATTI
EDITORA: Fantástica Rocco
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 550


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