E quem foi que disse que é preciso ser explícito para chocar? O ANO DA GRAÇA utiliza disso, metáforas e sutilezas absurdas: absurdas pelo radicalismo, mas absurdas também pela semelhança com a realidade, mesmo que nas entrelinhas. E se toda mulher fosse obrigada a deixar parte de si para trás, correndo risco de vida, pelo bem dos homens? Bora lá para essa resenha!

Aos 16 anos, tudo muda. Garotas começam a desenvolver poderes especiais que as tornam perigosas para os homens.  Aliás, perigosas para elas mesmas, é o que dizem, é por isso que precisam se purificar.

É proibido. Nos dizem que temos o poder de fazer homens adultos saírem de suas camas, deixar garotos alucinados e enlouquecer as esposas de tanto ciúme. Acreditam que nossa pele emana um afrodisíaco poderoso, a essência potente da juventude, de uma menina à beira de se tornar mulher. É por isso que somos banidas aos dezesseis anos.

O perigo surge de poderes especiais. Quando a primeira mulher, a poderosa Eva, pecou, condenou todas as suas descendentes a uma maldição. Aos 16, elas precisam passar pelo Ano da Graça, que é uma versão mais sangrenta e bizarra de JOGOS VORAZES para se purificar e merecer fazer parte da sociedade.

Aos 16, o destino também muda para sempre, e não é só pelo risco de vida. Bem na vibe de A SELEÇÃO, as meninas são enfeitadas e expostas para serem escolhidas pelos seus futuros maridos. As que não recebem um véu, são condenadas a uma vida de servidão. Doze bons partidos e trinta e seis garotas. É uma honra fazer parte da nata das escolhidas, mesmo que você precise casar com um velhote nojento e repugnante e deixar seu livre-arbítrio para trás.

Em uma sociedade dominada pelo patriarcado, Tierney só quer uma coisa: ser livre e ter controle da sua própria vida sendo solteirona. Após anos sonhando com o dia em que seria livre, o inesperado acontece, seu melhor amigo a condena à vida que ela sempre repugnou e nunca quis fazer parte. Trajada com o véu das escolhidas, é obrigada a se casar com alguém que não ama, sendo propriedade dessa pessoa, sem voz e sem escolhas. Em O ANO DA GRAÇA, ou ano da purificação, se preferirem, acompanhamos a história dessa protagonista badass, lutando contra tudo e todos.

Paralelamente, a protagonista está sendo enviada, junto com outras 35 garotas, para um acampamento sangrento, onde a morte é companhia constante e ninguém sabe nada sobre. É proibido falar sobre O Dia da Graça. A única coisa que se sabe, é que nem todas voltam, e as que voltam, estão marcadas por toda a vida. Para piorar, seu único refúgio, a floresta, está repleto de predadores estripadores que vivem à margem da sociedade. Quanto mais dor e sangue arrancarem das garotas poderosas, maior será a recompensa.

As primeiras páginas são chocantes, mas o que choca não é a violência implícita, e sim o que está acontecendo. Foi brilhante a forma com que Kim Liggett escolheu para dar luz a essa história, expor o machismo e a ausência de escolhas que nós, mulheres, sofremos pelo simples fato de termos nascido mulheres. Não é necessário fazer vilões estereotipados para a gente compreender a gravidade da situação. Coloque mulheres que não se conhecem se virando e atacando umas às outras por um véu, ou pior, pelas suas próprias inseguranças.

Coloque, ainda, de fundo nisso tudo, construções de personagens magníficas e reviravoltas de tirar o fôlego, tudo com consciência política no palco principal, sendo a trilha sonora que reverbera a cada ato. Você sabe o que está acontecendo, mesmo sem uma palavra sendo dita sobre. Não adianta negar.

É uma história surpreendente, embora eu não concorde com algumas reviravoltas, que te faz e obriga a ler e destrinchar todos os segundos sentidos por trás de cada palavra. O que senti enquanto lia é algo que poucas obras da atualidade despertam em mim: inteligência, amargura e revolta. Será que é assim que tratamos nossas irmãs?

Esta é a única noite no ano em que mulheres têm permissão de se congregar sem os homens. Seria de se esperar que usássemos a oportunidade para conversar, compartilhar, desabafar. Em vez disso, continuamos isoladas e mesquinhas, nos comparando umas às outras, com inveja do que não temos, consumidas por desejos vazios. E quem se beneficia de toda essa competição? Os homens. Somos mais numerosas do que eles, duas mulheres para cada homem, mas aqui estamos, trancadas em uma capela, esperando que eles decidam o nosso destino.

Como disse, mesmo não tendo gostado de alguns elementos do final e de terem jogado um triângulo amoroso em uma narrativa que não tinha necessidade nenhuma, O ANO DA GRAÇA cumpre com o prometido e oferece ainda mais.

Vejo como leitura obrigatória para mulheres, homens e fãs de distopia. Na verdade, todo mundo deveria ler.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Kim LIGGETT
TRADUÇÃO: Sofia SOTER
EDITORA: Globo Alt
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 353


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