A Segunda Guerra Mundial está constantemente no imaginário das pessoas, graças aos vários filmes e livros que exploram esse bárbaro evento. Em AS ÚLTIMAS TESTEMUNHAS, teremos o pouco comentado, porém extremamente importante, ponto de vista das crianças sobreviventes em primeiro plano. Suas experiências, tanto de forma direta, como indireta, estão presentes nessa leitura que é um grande soco no estômago. Se prepare pro impacto!

Para contextualizar, o país que mais sofreu com a guerra foi a extinta União Soviéticas, que viu chegar em seu território uma invasão sem precedentes na história. As estimativas apontam para mais de 25 milhões de mortos só no território soviético. O avanço dos alemães até Moscou foi brutal nos territórios que, naquela época, eram repúblicas soviéticas, hoje países independes, como: Bielorrússia, Ucrânia, Estônia, Letônia e Lituânia.

O livro vai apresentar uma série de relatos de sobreviventes que eram crianças/adolescentes. Cada entrevista pessoal vai mostrar o ponto de vista e o que a guerra significa para cada uma dessas crianças. Dentro dos relatos, teremos a visão das crianças soviéticas nos territórios entre Moscou e também mais para o interior do país.

É interessante notar que os relatos variam muito de tamanho, mas, na sua maioria, não passam de duas páginas cada. Um fato no mínimo curioso é que idade não interfere no relato. Tem criança que, com apenas 4 anos, tem muito a lembrar; e outras mais velhas, que preferem não pensar sobre as atrocidades que viveram; e isso serve para o leitor ter uma visão mais concisa. No seu início é apresentado para o leitor a idade dos sobreviventes e a profissão que exercem nos dias de hoje. Também há relatos de crianças que nasceram durante o conflito e suas experiências no pós-guerra.

E os conteúdos dos relatos machucam ao mesmo tempo em que chocam. Os traumas são enormes, e são apresentadas coisas que nunca nem imaginávamos. Dentre os sobreviventes, havia crianças que eram raptadas e levadas a hospitais onde tinham seu sangue retirado para ser dado a soldados alemães, pois existia a crença de que sangue jovem curada os feridos com mais rapidez. Crianças com fome pedindo comida, que eram afastadas por água quente atirada pelos nazistas. Crises de doenças, proliferação de piolhos e os tão temidos bombardeios. Essa atrocidade assolou a vida de quase 90% dos sobreviventes, onde alguns não entendiam o que estava acontecendo, achavam que era brincadeira ou apenas uma tempestade.

Um dos relatos mais chocantes é sobre uma menina que achou no chão um objeto estranho, ela pegou e foi brincar com ele sem saber que era uma granada. Outra criança era tão pequena que, ao ficar órfã, ela nunca soube seu nome verdadeiro. O terrível cerco à cidade de Leningrado, hoje chamada de São Petersburgo, também é relatado em cruéis detalhes pelos pequenos. Essa que é uma das mais importantes cidades da Rússia, já foi morada de imperadores e que, durante a guerra, foi cercada e sua população foi, por quase mil dias, refém da fome e do desespero. Nenhuma comida chegava à cidade e faltava de tudo, as pessoas morriam aos montes e a comida se resumia a qualquer coisa, como couro, papel de parede e até mesmo animais domésticos, como gatos e cachorros. Horrível de se imaginar e impossível não sentir um desconforto ao mergulhar nos detalhes.

O livro tem uma leitura ágil e fluida, porém o nível do conteúdo é tão pesado que fica difícil ler numa tacada só, mesmo que seja possível. O leitor sente que precisa de uma pausa, sente que precisa respirar fundo antes de continuar a leitura, pois choque e emoção serão extremamente intensos em quem se aventurar nessas páginas. A leitura mostra uma visão humana e pouco explorada nas mídias, as crianças têm muito o que falar e nas pequenas coisas está o verdadeiro sentido de sobrevivência e ingenuidade. É triste ver como a guerra destrói a criança ao inseri-la numa desgraça sem precedentes. Mesmo pesada, é uma leitura importante e necessária para a luta contra as guerras e a proteção dos pequenos que são o futuro do nosso mundo.

É tão bonito, mas mata

A descrição de uma criança para um soldado alemão que estava invadindo sua cidade. Os nazistas e sua bizarra doutrinação ariana também são citadas pelos sobreviventes. Uma das estratégias soviéticas para atrapalhar o avanço do inimigo era realizar o êxodo, que consistia no avanço da população cada vez mais para o centro do país, e nessa caminhada, queimavam tudo o que poderia ser útil para os alemães. Queimavam casas, fazendas e plantações inteiras, o gado era colocado em marcha e suas mortes eram quase sempre terríveis. Um pesadelo sem fim que se iguala a um autêntico filme de terror.

Um livro de cortar o coração e que vai te mudar de alguma forma. Escrito por uma autora premiada, esse livro é necessário e importante para todo o ser humano. Prepare-se para se emocionar e siga em frente, dias melhores virão!


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Sventlana ALEKSIÉVITCH é uma renomada escritora ucraniana, vencedora do premio Nobel de Literatura 2015. Estudou jornalismo na Universidade de Minsk, turma de 1967. Desde os seus dias de escola já tinha escrito poesia e artigos para a imprensa escolar. Foi jornalista da revista literária Neman de Minsk, para a que escreveu ensaios, contos e reportagens. O escritor bielorrusso Ales Adamovich inclinou-a definitivamente para a literatura apoiando um novo género de escrita que denominou “novela coletiva”.
TRADUÇÃO: Cecília ROSAS
EDITORA: Companhia das Letras
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 275


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